quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A Morte do Matador

Pilar não é tipo de cidade que se possa chamar de cidade grande, mas também não é uma típica cidade interiorana padrão. É interessante como hoje, neste século, ela consegue absorver características de grande metrópole e de cidade cenográfica de westerns. Não sei exatamente como explicar essa mistura estranha. Só sei dizer que ela tem tudo o que esses dois extremos têm de melhor. Pelo menos era assim até antes de me mudar e acho que não mudou muita coisa. Os trens continuam indo e vindo, levando e trazendo o povo. Espera. Acho que os trens explicam essa ambiguidade citadina. As pessoas praticamente abandonam a cidade todos os dias pela manhã e regressam somente à tarde, quase à noite. Isso causa um imenso engarrafamento de gente apressada, motorizada ou a pé, e nesses horários é que Pilar lembra uma São Paulo. Mas no período entre o começo da manhã e o final da tarde, quase não há ninguém na cidade, o que dá a sensação de abandono, de cidade fantasma e fez alguém, entendido em densidade demográfica, cunhar o termo Cidade Dormitório. É isso o que Piliar é, Cidade Dormitório. Ou era até antes de eu me mudar de lá.

Pode ser que alguma coisa tenha mudado da Pilar onde nasci para a Pilar deste século. Meu pai chegou à cidade vindo do sul não sei por que razão. Não havia nada lá. Nada a não ser um terreno que ele comprou de um parente andado que garantiu que o lugar era bom de viver. Acho que havia sonhos em Pilar e meu pai chegou ali junto da minha mãe e dos meus irmãos mais velhos. Eu já nasci lá, um legítimo pilarense. Ele me dizia que quando chegou, a cidade ainda era mais tranquila. Isso lá pela época do golpe militar. Por muitos anos meu pai foi empregado de inúmeras empresas em São Paulo. Isso fez com que ele passasse a maior parte do tempo fora de Pilar e longe de minha mãe e dos meus irmãos. Mas, no começo dos anos 80, ele foi afastado do seu último emprego por um problema de saúde que o tornou um pensionista do governo, como ele dizia. Odiava isso. Sentia-se inválido. Acho que por isso, mais que por necessidade, decidiu abrir o bar perto do campo de jogo da Sociedade Esportiva Vitoriana, que tinha esse nome não porque vencia muito, mas porque o bairro se chamava Vila Rainha Vitória. É no bar que a minha memória começa de fato.

A ideia do bar nunca foi exatamente aceita por minha mãe, mas pelo menos ela tinha meu pai por perto, coisa que desde nunca havia acontecido. Mas lidar com tantas pessoas de, como ela dizia, má fama era realmente assustador para ela. Os negócios começaram bem e a rotatividade de cliente ao balcão era impressionante. Sobretudo nos domingos de jogo e principalmente quando a Vitoriana de fato vencia. O verde e o branco se espalhavam por dentro do bar em meio a fotografias dos times memoráveis na parede e dos poucos troféus de festivais que eram expostos nas prateleiras ao lado de garrafas de velho barreiro e dos potes com cambuci curtido em cachaça de alambique. Lembro-me bem de que os objetos que rendiam mais histórias eram a foto do time de 87 e o seu troféu de vice-campeão municipal. Era pequeno na época para entender, mas todos dizem que o título foi perdido de mão frente ao Desportivo Assis Brasil com um gol do Leiva e que o time vitoriano era o melhor da história e, a exemplo da seleção de 78, o campeão moral. Meu irmão era o ponta-esquerda na época. Acho que ele ainda hoje comenta essa derrota amarga, porque às vezes quando conversávamos ainda repetia essa história.
O time era uma parte importante da história do bar e da minha, já que atuei como um meia-atacante do mais sem jeito (quase sempre fiquei na reserva da Durval) até que desisti ainda aos 17 anos. Mas o que realmente me chamava à atenção eram os personagens que frequentavam o balcão de papai. Quase posso vê-los nas mesinhas de metal. O Lóris era um holandês vermelho, um tipo estranho que falava pelas ventas loroteando para divertir os amigos. O Seu Augusto, durante vinte e cinco anos mais ou menos (desde antes de mim), sempre chegava com sua bengalinha a passo lento e religiosamente no mesmo horário para se encostar ao balcão e beber rabo¬-de-galo. Eu mesmo o esperei com o rabo-de-galo pronto na tarde do dia anterior ao da sua morte. O Lázaro e o Estevão eram dois irmãos. Eram jovens, gêmeos e bebiam com uma voracidade inconcebível. Às vezes caíam juntos, às vezes iam se escorando um no outro e pareciam siameses. O Pernambuco curtiu tanto tempo uma cirrose que me lembro dos outros apostando quando seria sua morte, mas foi o último a morrer. O Conterrâneo contava suas histórias de participação em shows de calouros e essas histórias eram a única coisa que ele sabia fazer de especial. O Jordão gaguejava quando sóbrio, mas era o mais eloquente depois da segunda cana. O Veloso reafirmava sempre a importância de um homem ter sangue nos colhões. E meu pai os servia a todos e nenhum deles lhe devia. Havia sim muita gente que merecia uma narrativa detalhada, mas um deles me interessa mais que os outros.

Laércio. Nenhum era o bêbado mais caricato que ele. Aquele que fala mais que todos e que sabe mais que todos. Que é chato como um bêbado, mas não havia quem não gostasse dele. Tinha uma facilidade lingüística fantástica. Narrava as histórias que vivia com uma emoção de escritor fracassado. Se as tinha vivido, ouvido, visto ou simplesmente aumentado não interessava: todos paravam para ouvi-lo. Ademais do hábito de falar compulsivamente, era imbatível na sinuca. Enfim, não são essas as características que me fazem falar dele, mas sim uma improvável lição de hombridade.
O que aconteceu foi que certa vez um sujeito conhecido como Galo Cego, dono de boca e matador evidente por pouca coisa, não gostou de alguma coisa que não sei o que foi que o Laércio teria dito a mais sobre ele em uma de suas histórias. O homem entrou no bar de repente com sua ginga de malandro e seus olhos miúdos detrás das lentes grossas dos óculos fundo-de-garrafa. Lembro-me da cena toda que vi por detrás do baleiro. Junto dele, entrou também o Celso que era algo assim como o seu escudeiro, ou melhor, carregador de armas e guarda-costas, pois foi o método que Galo Cego encontrara de ter um olho às costas e escapar de um flagrante por porte de arma caso a polícia o pegasse. O objetivo da sua visita ficou claro para todos quando ele interrompeu a jogada do Laércio ao retirar a bola branca da mesa: “pudim de pinga de merda”. Demorei a entender que não existia uma pinga feita de merda (o que me pareceu asqueroso na hora) e que tudo foi por causa das palavras mal escolhidas. Depois da ofensa, o único movimento que Laércio fez foi assentir com a cabeça como se dissesse “pois não?” e se manteve firme olhando para o agressor. Galo cego cobrou-lhe explicações não sei sobre o quê, pois o desgraçado além da deficiência visual construía frases com nenhum significado possível para um garoto de oito anos.

O Galo olhou a sua volta como que procurando os rostos apavorados dos outros presentes. Ninguém, nem o Celso, conseguia manter a mesma firmeza do Laércio e isso incomodou profundamente o Galo Cego que olhou para o meu pai e ordenou que ele entregasse cinco fichas do bilhar. Acho que entendi o que ele queria. Mataria o Laércio que qualquer forma, mas precisava antes humilhá-lo e pôs as cinco fichas sobre a borda da mesa já com um taco escolhido. Galo Cego perdeu uma a uma as fichas até a terceira para um Laércio que jogou como nunca vi. Ficou sóbrio de uma hora para outra, como uma por uma cura divina e mostrou um semblante de homem sereno que nunca havia visto. Com a última bola na caçapa, a fúria do Galo Cego custou um taco do meu pai que ele quebrou batendo na mesa e fazendo todos saírem do silêncio num susto coletivo. Celso entregou a arma ao Galo Cego ao seu pedido. Laércio se manteve apoiado no taco esperando a jogada fatal do adversário. A arma apontada para a cabeça. Galo apertou o gatilho. Fechei os olhos. Não ouvi o tiro. Pude ver ainda a cara de surpresa que fez o Galo Cego. Mas gostaria mesmo era de descrever a minha cara de surpresa ao ver o Laércio virando o taco com força na têmpora e arrebentando-lhe os óculos. Não precisou de ouro golpe. E praticamente todos correram do bar.

Celso se aproximou, cumprimentou meu pai, pagou pelas fichas, pegou o revólver, deu um tapinha nas costas do Laércio e saiu como se não tivesse estado ali. Meu pai me mandou para dentro, pois só agora tinha se dado conta de que eu estava ali. Papai implorou e o Laércio foi embora. A polícia fez perguntas, mas conhecendo o Galo Cego pagariam uma pinga para o Laércio em vez de prendê-lo. Ele voltou para a sua terra, não se ouviram mais suas histórias, todos desconfiaram que o Celso tirou as balas da arma, o Veloso declarou que o Laércio tinha sangue nos colhões e eu finalmente entendi essa expressão.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Poeira Vermelha

As ruínas lhe chamaram a atenção e era tudo quase que um cenário que guerra. Meias-paredes ainda ficavam quietas como se insistissem em sustentar a casa que já não existia mais. Um animal sem dono aparecia farejando o rasto do homem que o alimentara e que por um motivo ignorado o abandonara ali nos restos de tijolos e de ferro retorcido. O homem não estava mais. A casa do homem também não. Ao cão perdido ele não deu muita atenção. Antes, observou os meninos que corriam arrastando sacos pesando o metal que conseguiam recolher dentre os restos de cimento desmanchado. Logo os meninos sumiram na poeira, sujos como a poeira. Vermelhos. Logo as vozes dos meninos sumiram na poeira. Ele apurou os ouvidos a buscar as vozes que arrastavam os sacos. Ouviu somente tratores. Não soube contar quantos anos os motores o fizeram voltar ao passado. Não há data certa para as memórias de menino, mas a lembrança era clara: a mesma poeira, os meninos muito vermelhos como aqueles, os tratores e ele mesmo menino.
O progresso. Era o progresso chegando ao bairro novamente como havia chegado quando ele era uma criança. O bairro era maior, quer dizer, tinha mais espaço e menos pessoas: um grande playground para os aventureiros meninos. Mato, brejo, bichos e imaginação. Alguns perigos: estrada de terra e caminhão. A mãe de um gritando não vá tão longe. A de outro chamando vem tomar banho. Um que passava correndo outro que se escondia, outro que era polícia e mais um que era ladrão. O valo já era meio poluído, mas os gurus barrigudinhos eram resistentes e presa fácil para virar peixe de aquário improvisado num vidro qualquer de Hellmann’s. Não raro, aparecia um peixe maior e virava brinquedo, porque comer ninguém tinha coragem. Podia fazer mal. Mas o que valia era brincar e desbravar o bairro de estilingue em punho ou correndo atrás de uma bola. Aquele lugar era um brinquedo grande. E o progresso prometeu melhorar o chão da antiga estrada de Sônia Maria cobrindo o vermelho esburacado com o preto do asfalto quente.
Não demorou nada, os políticos foram ao bairro anunciar a novidade. O bairro se desenvolveria, pois em breve estaria ali todo aparato necessário para crescer. O terreno seria preparado. A terra vermelha seria coberta de uma camada de brita sobre qual seria deitada uma camada eterna de asfalto. Chegaram primeiro os carros que trouxeram os agrimensores. Esses mediram tudo. Perguntaram tudo. Que bom. Era possível alargar a estrada sem mexer com as casas que a margeavam. Apenas um pouco mais que uma dezena de casas foi desapropriada porque a ponte era muito velha e a nova logo estaria pronta e era preciso mudar de lugar o caminho. E todos fora, chegaram os tratores. Primeiro uma retro-escavadeira para pôr as casas no chão. E toda gente e toda criançada foi lá ver as casas serem derrubadas. Depois chegaram a plaina, a pá-carregadeira e os basculantes. A plaina abria caminho forçadamente fincando a garra das suas esteiras no chão e empurrando ia revolvendo a terra. A pá carregadeira, sem esforço, juntava a terra solta e o entulho que foi um pouco mais que uma dezena de casas de alguém e enchia os basculantes que levavam tudo, um após o outro, não se soube nunca para onde. Os meninos se divertiam observando extasiados aqueles monstros amarelos e poderosos que faziam tremer o chão e rugiam ao comando do homem que acelerava. Definitivamente os tratores eram as estrelas.
Não se nota o perigo que há em certas coisas até que ele assovie ao ouvido de alguém. O cavalo morto era branco e estava dividido ao meio. Não soube jamais que monstro daqueles havia cortado o pobre animal e por medo tentou não ignorar a mãe que lhe chamava a atenção para o acidente: podia ser você ou qualquer de seus amigos. Graças a Deus que foi um cavalo. Coitado... E você está proibido de chegar perto da estrada. Agora é muito perigoso. Ele ouviu a mãe e pensou no cavalo. Pensou que sua mãe era a única a se preocupar com o cavalo morto, pois a partir daquele dia era ele o único menino que não ia ver os tratores fazendo o seu trabalho. Sentiu-se só nos primeiros dias e teve inveja dos amigos que voltavam vermelhos. Mas se voltavam, era porque vez por outra alguém da obra dava conta deles e os expulsava de lá. Ele desobedeceu à mãe um dia e voltou a ver os tratores. O trabalho da plaina e da pá-carregadeira estava finalizado. O que havia sobrado do entulho para remover era trabalho fácil para uma mera retro-escavadeira e um basculante. Os outros basculantes agora traziam a brita que seria assentada na terra vermelha. E já haviam chegado o rolo-compactador que só serve para afirmar a terra fofa e a patrol, a moto-niveladora. O maior de todos aqueles monstros com certeza. Esguia como um inseto gigantesco ela espalhava a brita sem esforço. Regulava a estrada e lhe dava forma de estrada. Neste dia sim valeu a pena sofrer as consequências da bronca da mãe por ter ido ver aquela máquina nova. Mais tarde ele pediu uma para o pai. Ganhou uma de brinquedo e ficou feliz.
Um tempo depois, ouviu que comentavam de um menino que fora buscar o pão para a mãe: morava perto da obra; mas que louca essa mulher que manda uma criança fazer trabalho de gente adulta; tão pequenininho assim, ó. E quis saber mais sobre o menino do pão. Fugiu da mãe e foi com outros garotos até a obra. Era verdade a história do pão. O saco estava lá no chão e havia pão ali, aqui e acolá. O menino estava coberto com jornal. A cabeça estava. Mais comentários. Não tem nem meia hora. Foi a patrol? Foi. Vinha de marcha à ré, ele correu atravessando a rua e o chinelo... Tropeçou no chinelo. No próprio chinelo. Caiu? É, caiu. Meu Deus. O tratorista foi para o hospital. Estava desesperado o coitado. Ele não viu? Não viu, não dava. O menino também não viu nada, não é? É... Estava correndo. Ele foi buscar pão... Todos os comentários, todos os rostos eram compaixão e assombro. A mãe do menino desesperava e chamava pelo filho e acusava os homens das máquinas e se acusava. Foi um acidente. Um acidente. Tentava conseguir passagem entre o povo entre todos os outros curiosos. E outro menino curioso quase dividiu o mesmo espaço com ele. Não o conhecia. Conheceu-o depois e ficaram amigos. Mais foram anos depois. E mais depois ainda, um dia, comentaram do menino atropelado pela patrol sem saber que estavam lá quase juntos e que talvez tenham pedido licença um ao outro ou se empurrado simplesmente com a boa educação dos meninos curiosos. Eram meninos. Como aquele embaixo do jornal. Ele só tinha ido buscar pão. Ele não quis ver as máquinas. Ele só morava ali e elas vieram.
Lembrou-se de que, depois do menino atropelado, não voltou a ficar perto das máquinas. Até chegou o rolo-compactador dos que só servem para alisar o asfalto, mas esse ele não quis ver. Os outros meninos continuaram indo ver as máquinas enquanto elas estiveram ali e já do menino dos pães ninguém se lembrava. Quando eles voltavam, voltavam meio pretos agora. O asfalto gruda na gente mais que a terra. Foi essa, então, a mais recente descoberta. Ele só viu depois o asfalto terminado, pintado e bonito com os carros que começavam a descobrir o novo caminho, uma nova rota. Olhou novamente a poeira do presente e sentiu saudade de todo aquele lugar do passado. A terra vermelha agora nesta segunda investida do progresso, talvez desapareça se transformando na mesma pasta negra que gruda em tudo e não sai. Agora o que está ou estará no chão não é somente uma dezena de casas, mas, quiçá, milhares. O progresso desta vez não é uma tímida e sinuosa estradinha de asfalto de duas faixas, e sim uma rodovia estadual que atropelará todo o lugar que ele conheceu como o seu quintal.
O vento levantou-se contra ele e lhe encheu os olhos com aquela poeira vermelha. E seus olhos há muito empenhados em traí-lo aproveitaram o ardume que a terra causou como desculpa e ele disfarçadamente chorou e partiu para a sua nova casa.


Evandro Ferreira

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Outro Café da Manhã

Foi com o alarido do canto de todos os galos daquela vizinhança mais o da casa que o dia começou às quatro da manhã. Vizinhança é o modo de dizer do povo dali, pois se considera vizinho já o que mora tão perto quanto os dez minutos contados na poeira e nas pouquíssimas cilindradas das motocicletas que põem desempregados os velhos jumentos.
As galinhas logo se despertaram com o chamado dos maridos, e com elas os primeiros passos na cozinha da casa iniciaram o ritual do primeiro café do dia. Dona Ana Josefa acordava todos os dias assim e, ainda meio sonâmbula, ia com a força de seus sessenta e cinco anos preparar o desjejum do marido: uma comida pesada para quem não tem o costume. Mas a paçoca de carne-seca e o café preto-petróleo (que assim ele gostava) servido na caneca de alumínio nos dão a entender que aquele homem de setenta e dois anos não iria fazer outra coisa senão se juntar a uma enxada, por vezes até mais companheira que Dona Ana Josefa. Sempre fora essa a sua vida, desde o casamento: o sol nunca se levantou antes dela e ela nunca reclamou. Aceitou cuidar do seu velho no dia em que aceitou viver com seu homem. Dona Ana Josefa olhou a réstia de luz que começava a entrar por debaixo da porta e pelas frestas da madeira que era a parede da cozinha e lamentou um pouquinho a sua vida pela primeira vez.
Era a filha mais velha de uma família que só foi concluída após morte do pai na boca de uma urutu quando ela já tinha quase dez anos de casamento. Foi nessa época que nasceu o último menino dos únicos três homens que demoraram a ter idade para ajudar ao pai na lida da terra. Assim, sobrou-lhe a ela a função. Cuidou das reses e ajudou ao pai em tudo, até a amansar boi carreiro. Acostumou-se logo com a vida de pouco brinquedo e de muito trabalho (mas tinha lá seus minutos de boneca de pano e peteca de palha de milho).
Luis Ubaldo foi a primeira coisa em que a menina realmente prestou atenção quando ele foi com o pai negociar duas novilhas. O jovem não olhou a menina com olhos de homem, mas lhe chamou a atenção a sua esperteza para a lida no campo. Luís Ubaldo logo voltou a procurar o pai de Ana Josefa. Primeiro a negócios que tratavam de terras e de cabeças de zebu a mando do pai, logo para uma visita à toa e outras e finalmente para lhe pedir a mão da menina. Não demorou muito para se entender com o pai. Com a filha já havia se entendido há bastante tempo com mais olhares e gestos que com palavras. Ele juntou o que tinha: o terreno, umas poucas reses e uma casinha recém-feita. Casaram-se e em menos tempo que o pai e que o sogro, tinham mais que os dois juntos.
Ela lamentou sua vida enquanto via o café passar como petróleo pelo coador:
― Meu Deus, quantos anos...
A palestra dos galos não acordou só a Dona Ana Josefa. Acordou também o seu Lua. Luís Ubaldo Aquino virou seu Lua assim que alguém atentou para o acróstico no seu nome de batismo que de certo não fora arquitetado pelo pai mais analfabeto que ele próprio, pois sequer o próprio nome sabia desenhar. Acordou também, mas, como sempre, ficava deitado ainda um bocado mais porque gostava de sentir o cheiro do café chegar ao travesseiro. Fora assim todos os dias há anos que ele não tinha a conta certa como Dona Ana Josefa: cinquenta e um.
Deixou-se ficar na cama sentindo o cheiro do café, mas, ao primeiro chamado de Dona Ana, levantou-se de pronto. No caminho entre o quarto e a mesa da cozinha, lavou o rosto, bochechou um pouco d’água, pôs a dentadura e se recompôs antes de se mostrar à mulher que fizera o mesmo ritual meia hora antes. O bom-dia usual dos dois sempre fora com os olhos – e assim foi.
Seu Lua comeu rápido, mas gastou o mesmo tempo que gastava todos os dias. Não sabia ao certo quanto tempo, mas sabia que era o mesmo porque o sol já subia mais depressa e a luz começava a entrar pelas frestas da madeira da janela. Não sabia o horário. Não tinha relógio. Nunca teve.
Ele limpou-se das partículas de farinha que lhe sobraram ao bigode. Mirou a Dona Ana com um amor terno, que assim poucas vezes ela tinha se dado conta. Olhou com o canto avermelhado do dos olhos, avermelhados de sono, de sonho, de gratidão. Quem sabe? Levantou-se com um meio sorriso da cadeira, o rápido que lhe permitiam suas pernas e pensou que as duas juntas tinham cento e quarenta e quatro anos. Esse não foi um pensamento repentino, pois a conta ele fazia todos os dias há pelo menos vinte anos. Há vinte anos, Deus meu. Vinte anos e ele não se esquecia. O meio riso ficou. O olho se avermelhou mais e ele tomou o chapéu pôs a mão na tramela, olhou rápida e disfarçadamente para dentro do cômodo e viu as poucas coisas que tinha, olhou Dona Ana nos olhos dizendo com eles que não se demorava ao almoço. E saiu fechando a porta atrás de si.
Ela compreendeu que o meio sorriso se perdeu e que os olhos ficaram avermelhados não foi por causa dos cento e quarenta e quatro anos das pernas. Era maior o motivo. Ela sabia que os olhos rápidos do seu Lua passaram pelo cômodo buscando mais gente que um casal de velhos. Ela sabia também que mesmo se os seis filhos estivessem ali não seriam os sete vingados de nove que ela pariu. Os sete que o seu Lua carregou. Os sete que ele criou. Doía ao velho a falta do mais novo. Doía-lhe a ponta de remorso. Isso tudo ela sabia, mas não falava.
Os olhos dela ficaram vermelhos também com a lembrança do Jorge saindo de casa abaixo da cinta do pai vinte anos antes. Seu Lua não entendeu o rapaz. A mãe entendia, não aceitava, mas entendia. Seu Lua o mandou embora com ódio e vergonha e ele foi para a capital. Um amigo que ele arranjou lá o ajudou e ele estudou, estudou e ia ser advogado. Mas se meteu com os comunistas. Foi preso e nunca mais foi visto. Ela nunca o pôde enterrar e, apesar de sonhar com ele vivo, sabe bem que ele está morto. Ela não entende direito, mas lhe parece que o negócio da repressão, da tortura, da ditadura, que padre sempre condenava no domingo (sem falar demais) é que lhe tinha levado seu mais novo. Ela também sabia que o Seu Lua perdoaria o filho se ele voltasse no dia seguinte, mas o Jorge teimoso não voltou nunca mais. O seu Alfredo, dono do secos-e-molhados e que lia o jornal todo dia e contava tudo para o povo o que ele entendia, falou que um bando de vagabundo tinha sido preso e tinha sumido também e que os artistas e um monte gente desocupada até marcharam para achar os vagabundos. Até podia ser tudo vagabundo, mas o Jorge não era. Era o filho dela e ela o conhecia. Ela sabia bem como o tinha criado. Ela sabia que ele e o pai se entenderiam. Ela sabia que o olho vermelho do Seu Lua era uma lágrima diária de saudade do menino e que teimava em não cair.
Respirou fundo como fazia todos os dias há vinte anos. Conversou alguma coisa com a nossa senhora e foi cuidar do almoço que o velho não tardaria em voltar da roça, porque ele somava a idade das pernas, mas fazia questão de se esquecer de colocar nessa conta a idade de todo o resto. Ela sorriu e desta vez não lamentou nada.
Evandro Ferreira

domingo, 18 de outubro de 2009

Amor

Ocioso, como raramente se via, ele acabou se sentando na velha poltrona com um álbum empoeirado nas mãos. Nem se lembrava mais das fotos que estavam ali. Então, abriu-o e deixou-se viajar pelo tempo, olhando aquelas imagens dos momentos que não voltariam mais. E olhando para ela, que, é claro, estava ao seu lado. Como sempre havia estado.
Como eram bonitos os seus olhos! E o seu sorriso tinha uma força que ele não vira em nenhum outro. Sentia-se novamente apaixonado por ela.
Seria a mesma que chegaria do trabalho daí a pouco e começaria a contar todas as desavenças do seu dia? Talvez... Talvez a moça mais linda de sua juventude ainda estivesse em algum lugar naquela mulher.
As imagens o transportavam para o momento em que as fotos haviam sido tiradas. E ele quase respondia em voz alta quando se lembrava das conversas que tiveram. Meu Deus, como o tempo passa rápido! Nesse tempo eles jamais se imaginariam juntos, numa família de quatro pessoas, vinte anos depois!
Tinham sido felizes? Tinham aproveitado a vida?
E o filme em sua cabeça começou a rodar: ela, tão linda, entrando de noiva na igreja lotada! Eles tendo problemas com as contas nos primeiros meses do casamento... O dia em que ela lhe dissera que estava grávida: o seu primeiro filho! Será que existia uma emoção maior do que essa? E a menina? Como era carinhosa! Ela podia pedir o que quisesse que ele encontraria uma forma de agradá-la, apesar da situação financeira nunca ter sido muito fácil. Lembrou-se de ter assinado os boletins das crianças, tantas vezes, orgulhoso! Será que os filhos haviam herdado isso dele ou da mãe? Como eram inteligentes! Como ele era feliz por ser o pai deles!
Lembrou-se de todas as vezes em que a esposa encontrou uma nova ruga e veio, aos prantos, reclamar do tempo. Depois vieram os cabelos brancos e seu peso foi aumentando... Mas, ora essa, ela ainda era linda para uma mulher de quase meio século! E ele ainda a amava, não como quando nos tempos da juventude, mas muito mais!
Ele sabia que, se, de alguma forma, pudesse voltar àqueles tempos, não mudaria muita coisa. Apenas os viveria com mais intensidade... Andaria mais vezes de mãos dadas com ela... Olharia menos vezes para o relógio aos fins de semana... Levaria as crianças mais vezes para o parque... Diria mais vezes o quanto amava cada um.
Ainda estava absorto em seus pensamentos quando ela chegou. Tinha uma sacola de compras e estava reclamando porque ninguém tinha posto o lixo para fora. Devia ter tido um dia meio estressante... Ele não ouviu o que ela estava dizendo. Simplesmente tirou-lhe a sacola das mãos e disse: Amor, vamos sair para jantar hoje?
Marta Lima

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Una Habitación

Tras una pesadilla se despertó en el medio de la noche. Se quedó cerca de la ventana de su habitación mirando la calle. No había nadie allí en la noche fría. Todos dormían. Solamente él y su insoportable insomnio estaban despiertos. Ahora, se acordaba de su adolescencia y de Marina. ¡Que guapa era ella! La chica más linda de todo el mundo – él pensaba. El primer amor.
En verdad, resurgió un pensamiento antiguo en su cabeza. Algo que pensaba no sentir desde aquel tiempo. Desde el colegio. Marina volvió a su pecho como una avalancha de emociones que él pensaba no tener más. Los muertos no pueden moverse en sus urnas, pero, a veces, ellos vuelven a los que se acuerdan de ellos. Era casi un sueño. Casi podía sentir el verano en su piel, aquel mismo verano de cuándo conoció a Marina. Extrañaba todas esas cosas de chico.
Tenía sólo dieciséis años y ya podría garantizar a todos que conocía el amor. Hacía mucho gusto de contarles a todos, pero no les hablaba el nombre de la chica. Sí, porque si Marina le descubriese, se quedaría furiosa y no habría más chance de conquistarla. Así fueron las cosas por mucho tiempo. Él sin coraje de contarle a ella. Ella a ignorarlo sin saber de nada.
Marina tuvo muchos otros novios y él se quedó celoso. Ella seguía ignorándolo como siempre. Pero un día, a las vísperas del examen anual, ella lo llamó por su nombre. Uno debe entender aquí la importancia de ser llamado por su nombre. Lo que más garantiza que otra persona lo conoce es llamarlo por su nombre. Enamorado, ahora se decía novio de Marina, como ella le dijo. Eran novios y hacían muchos planes. Él quería un futuro y ella quería ser aprobada en el examen. Él sabía matemática y ella quería ser aprobada en el examen.
Dos semanas y un examen, fue el tiempo de este amor. Marina fue aprobada como quería y celebró su resultado, con otro novio. Él recibió sólamente un muchas gracias y una traición. Él no ambicionó saber como ella estudió inglés, biología, física o cualquier otra disciplina y garantizaba a todos que no podría más vivir. Y, de cierto modo, hoy ha muerto aquel chico inocente que no conocía el amor verdadero.
Volvió a su habitación gracias a una voz que le llamó por su nombre. Una voz adormilada y suave. Ahora, él mira su cama, se alegra al ver a Ángela, su esposa, la madre de su hijo, su mejor amiga y el verdader amor de su vida.

Evandro Ferreira

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O Blefe

O vento úmido assoviava nos cantos dos telhados romanos daquelas casas que, de tão velhas, tanto pareciam abandonadas. Era assustador, pois naquela noite a lua, desobedecendo à ordem divina, não cumpria a sua função de luminar e, ao contrário, se escondia por detrás de uma densa camada de nuvens negras e o céu era todo negro e a rua era toda negra. O tempo não era de frio, mas as roupas molhadas mudavam a percepção e o janeiro era como junho, mas sem festas. O calçamento das ruas era inútil para os sapatos de solas de couro, escorregadios demais para as pedras cheias de limo verde, mas isso não dava para ver, havia de se tatear com o pé antes de mudar o passo prevenido de um possível escorregão. Correr, nem pensar. As rodas dos carros, estacionadas no meio-fio, eram como barragens a juntar toda sorte de tranqueiras que descera com a água da chuva de há pouco e que invariavelmente iriam entupir uma ou outra boca-de-lobo. O homem pisava o lixo enquanto arriscava ficar em pé e caminhar o mais rápido possível sem estragar o verniz do sapato. Era italiano, não o homem, o sapato. O sujeito era um tipo que não se classifica, mas era médico. Estava a pé porque o carro pifara, pois carros italianos, como sapatos italianos, não gostam dessas cidades de calçamentos de paralelepípedos gastos e mal-assentados de tantos anos, e então caminhava desculpado por cumprir o dever do juramento, apressado o mais que podia, carregando a mala pesada de apetrechos que nunca serão vistos. Enfim, estacou-se ao pé de uma porta grande, filha de uma casa assustadoramente maior que o comum. A igreja ficava a duas quadras de ali, e não chamava tanto a atenção para si. Impossível não pensar o que pensou, e sua imaginação dizia que aquela casa era maior que a sua e provavelmente que a de Deus também. E ele fez a comparação. O homem dos sapatos de verniz mecanicamente tocou o botão que seria o da campainha e perdeu outros segundos, porque só então se lembrara de que se tudo estava escuro era porque a chuva havia desativado algum transformador e lhes roubado a energia elétrica, logo a campainha era inútil, então esmurrou a porta de madeira maciça com violência até ser ouvido. A trava pesada e barulhenta se abriu e o homem foi aceito pela grande casa com desespero digno da fome que se tem pela salvação.
Se assim se inicia este conto, é sempre bom estar avisado de que assim também se inicia uma desgraça. Ora, então por que continuar a ler se o mundo já é tão cheio de desgraças? Ora, como não é possível saber se todos já se consideram tão desgraçados, vamos em frente, pois ainda não sabemos o que o homem do sapato de verniz está fazendo dentro da descomunal habitação agora.
Se Deus andou descalço, esse outro salvador veio de sapatos de verniz. Passou pela sala largando nas mãos da criada que o recebera o paletó encharcado e o chapéu entortado pela água que pesa. Havia luz de candeia agora, mas ele não se deu tempo de observar a casa em detalhes, mas nos assegura essa fraca luz que era uma sala grande, tipicamente aristocrática, com ao fundo uma grande estante com escopetas e toda a tralha de caça imaginável, umas cabeças-troféu de inumeráveis espécies bem conhecidas e de algumas ainda desacreditadas da sua existência por muita gente penduradas aqui e acolá, um piano de cauda que deveria valer uns bons dobrões e que, importado, possivelmente sofreria muito mais a umidade dessa região. A grandiosidade da sala remetia a um estilo antigo de construções, o espaço era privilegiado com uma mobília muitíssimo bem disposta apropriada para longas palestras de anfitrião e convidados. Sabemos que o homem do sapato de verniz é médico, o que nos dá o direito de chamá-lo de doutor, sim, porque esse realmente o é, estudou e se formou fora do país e é muito respeitado em Europa, veio cá fazer não se sabe ainda o quê, mas deve fazer bem feito. Então, o doutor passou sem dar muita atenção à disposição dos móveis, mas percebeu alguma claridade que de jeito seu cérebro não pôde evitar, afinal estava acostumado com o breu que a chuva provocara em toda a cidade, há muito já conhecia o lugar e sabia o caminho pelos corredores e escadas sem precisar de cicerone, chegou à porta do quarto onde estava outra criada com uma expressão mumificada e entrou já preparado a aplicar uma injeção, uma de um mesmo frasquinho de vidro amarelo que há meses dizia que acalmaria a dor do moribundo, mas os seus serviços de médico só foram necessários para assinar o horário do óbito. O morto jazia em sua cama, iluminado já por velas colocadas ao seu redor ao jeito de um velório improvisado, coisa da crença da senhora governanta e de outros empregados, gente humilde que viu o amo decair gradativamente com convulsões e febre fatais que o melhor doutor, tendo acompanhado toda a evolução do caso, mesmo com a ajuda de tantas literaturas e de tantos talentosos colegas apareceu-nos sem o devido diagnóstico. O pior foi que o doutor não chegou a tempo para acompanhar o seu paciente nos últimos ais e lhe segurar a mão como a de um irmão, mas antes, poria as luvas de látex, pois a febre abrira feridas pustulentas na pele e sabe-se lá o que este homem tem. Assim mesmo ainda examinou o homem na cama para ter a certeza e saber se postumamente encontraria algo que lhe desse uma resposta ou que lhe aclarasse as idéias. Não sabemos o que o homem na cama tinha ou o que agora o tem, mas saberemos agora que o homem na cama não tinha por que morrer na companhia somente de criados e de um médico. E a família desse homem já que saberemos adiante que ele tem sim uma família? Sabemos que o homem na cama era muito rico, julgando pelo tamanho da sua casa contrastante com o resto da cidade. O silêncio fechou aquela casa hermeticamente.
Com o sol alto já era tempo de se alimentar, pois saco vazio não para em pé, como disse a governanta, e além do mais o senhor passou a noite inteira a velar o patrão e que horas são essas de o senhor cair doente, pois que nem a roupa molhada o senhor trocou, então não me recuse tomar o meu café. Segurou a chávena um tanto vacilante, mas o aroma do café que parecia recém-moído, fresco de tudo, e tirado há pouco em coador de pano foi o suficiente para animar aquela alma a sorver uma grande quantidade meio que queimando a língua. Hora exata em que pisou o tapete da sala um jovem de boa aparência que avisado da piora e depois da morte do pai veio à casa o mais rápido que pôde. A governanta o abraçou, aos gritos de que desgraça, como o faria uma mãe ao retorno do filho. Os homens por um instante se olharam e se reconheceram. O doutor era já há muito freqüentador daquela casa. Desde muito menino para ser mais exato, ainda muito antes do nascimento do rapaz, que agora está diante dele, homem-feito e bastante diferente do pirralho que foi quase expulso de casa a estudar fora por inventar certas inverdades e que há um tanto de anos não mantinha pelo pai o mesmo interesse que pela medicina. O doutor nasceu na casa, filho de uma empregada cujo nome não nos interessa agora, ainda quando o morto tinha menos de vinte anos. Foi criado por lá até que sua mãe morreu e, então, foi mandado para a capital custeado pelo pai do morto e de lá conheceu o mundo graças ao seu patrocinador. O morto, com a morte do pai, assumiu a casa e os negócios da família. Já era casado e enquanto o doutor conquistava o seu título lá fora, o rapaz nascia na casa. Coisa de doze anos mais tarde, o doutor retornou a morar com o morto e sua família e poucos meses depois o garoto, pivô de desavenças foi mandado para o internato. Não se explica a história aqui, mas o fato é que a sua mãe morreu alguns meses depois com uma parada cardíaca inexplicável para tão saudável mulher. Talvez daí venha o seu interesse por medicina. Mas voltemos aos homens que se olham na grande sala. Rancores pesaram o ar, mas não era hora para essas coisas de antiguidade, era hora de tocar com os preparativos da cerimônia que levaria o morto finalmente para fora de sua casa.
O enterro foi feito e nenhum dos homens trocou palavra. Veio a missa de sétimo dia e nenhum fez qualquer gesto que indicasse um fazer de conta que aceitava o outro. O doutor voltara a sua casa e o rapaz ficara interinamente responsável pelas coisas da família. Sim porque todos ainda aguardavam o testamento que o advogado do morto traria para ser aberto após a missa de sétimo dia, como era vontade mirabolante do morto. Os interessados foram chamados a comparecer e foram à casa do morto.
A sensação de morte traz a alguns uma aguçada percepção do resto da vida, como se espremesse o último sumo do coração acelerando suas batidas a bombear mais e mais sangue para o cérebro. Essa sensação traz a mente de volta ao seu trilho e retira dos olhos a nebulosidade da crença que tinha na vida. Espero que isso explique bastante do resto desse conto.
E estavam lá o advogado, o rapaz, a governanta e sua filha (também criada), o doutor e estranhamente o delegado e um policial. O advogado, ao jeito de um professor antiquado, começou a leitura lenta de todos os termos legais do testamento. E todos os outros, exceto o rapaz, e principalmente o doutor, ao jeito da impaciência se remexiam nas cadeiras. Depois chegou a parte que todos esperavam. Chegou a carta do morto. E as frases doentes foram claras. A governanta ficaria sob a tutela do seu herdeiro que lhe deveria dar a aposentadoria justa compensadora dos quarenta anos de dedicação àquela casa. A mulher chorou segurando a mão da filha. E o resto da carta era dirigido ao rapaz, seu filho. Dizia o morto que seu coração sempre fora honesto, mas que muito se enganara na vida. Seu filho não mentira nas suas certezas de anos antes, mas ele não confiara no rapaz. Pedia-lhe perdão, pois confiara no outro, no meio-irmão que seu pai lhe dera, o filho da empregada. Confiara em seus remédios, que o puseram de cama e o fizeram ruir. Mais sorte tivera sua mãe que se fora de um golpe, talvez com o remédio muito mais forte do qual o seu filho suspeitou sempre. Sentia muito, dizia ao filho. Pedia-lhe perdão novamente e afirmava que ele era seu único herdeiro, nenhum outro mais e que esperava que o frasco que seu advogado tinha sob sua custódia esclarecesse a sua doença.
O resto da carta não nos interessa, pois traz somente as recomendações do pai morto que deixa a herança para o filho que não puderam ser lidas nesse dia, porque ao se revelar a existência de um frasco-prova, imediatamente o doutor sacou uma seringa da sua maleta e um de seus frascos amarelos, mas bem maior que todos os outros, e encheu a seringa com a maior dose que pôde, maior que qualquer uma que já ministrara. O delegado e o policial se movimentaram como para impedir o doutor, mas se estacaram a um passo dele sem poder fazer nada. O doutor cavou a agulha no próprio estômago enquanto gritava é meu direito, sempre foi o meu direito, meu direito. E injetou o líquido em si mesmo e o silêncio voltou à casa a que pertencia. Nenhuma voz enfim se ouvia, apenas algum gemido do doutor sozinho no chão, como um feto abortado. Os sapatos de verniz raspavam no soalho e aos poucos perdiam o brilho com os arranhões. O rapaz se agachou diante do agonizante, aproveitando um resto de lucidez do doutor, e pôs diante de seus olhos, com um tanto de riso no rosto, o frasco-prova. Uma lágrima dolorida saiu do olho do doutor quando notou que esse frasco era azul. Silêncio.


Evandro Ferreira

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Meira?

Como todos os dias, tirando os sábados e os domingos, dos últimos quatro anos, Meira subiu as escadas do metrô, atravessou a rua e entrou no primeiro edifício depois de dobrar a esquina à esquerda, cumprimentou de soslaio a moça da recepção, apresentou o seu crachá para o segurança, pois havia duas semanas o seu cartão não destravava a catraca que dá acesso ao corredor dos elevadores, o moço acionou um mecanismo, sorriu-lhe um tímido bom-dia e liberou a passagem pela portinhola dos visitantes e lá foi o Meira correr atrás do elevador de que lhe seguravam a porta. A mão na porta era o Castro que trabalhava a duas mesas à esquerda do Meira na repartição cheia de baias onde somente os gerentes ou maiores tinham uma sala individual, mas as mãos dos dois colegas de há três anos não se tocaram e o gesto mais cordial foi o sorriso de agradecimento do Meira ou talvez aquele olá entre os dentes sem vontade de falar comum de todos.
A viagem até o décimo terceiro durou eternamente mais com esse colega do que duraria com a colega da direita, a Sandra. Meira olhou para a foto do seu crachá que ainda não tivera tempo de guardar, olhou para o seu nome e percebeu que o senhor Luís Carlos de Albuquerque Meira nunca tivera coragem de falar com a moça e sem pensar duas vezes disse sem olhar para o colega Acho que o ar condicionado está desregulado. Como o outro respondera Estou bem, ele sorriu de canto de lábio, fingiu aceitar a resposta e imaginou Sandra reclamando do frio apenas para chamar a atenção para o seu decote. Quando o elevador parou no andar, os dois não tinham falado mais sobre o ar condicionado nem sobre o futebol do final de semana, que pouco lhes interessava, muito menos sobre Sandra. Meira seguiu pelo corredor assim que deu passagem ao seu colega, retribuindo-lhe a gentileza da mão na porta do elevador. Chegou a sua mesa, ligou o computador, cumprimentou os colegas mais próximos e caminhou com passos decididos até a máquina do café. Escolheu café puro porque não havia creme, mas lembrou-se de colocar adoçante em vez de açúcar que não faz muito bem. Da máquina de café acenou ao seu gerente que acabara de levantar da sua mesa, grande, espaçosa e com um monitor de LCD. Definitivamente esse careca tinha alguma coisa com a Sandra pensou o Meira sorvendo um gole do café que lhe queimou a língua.
É hora do trabalho. Ao caminhar de volta a sua mesa, Meira sentiu uma estranha tontura como se o piso lhe faltasse e a cabeça crescesse sem nenhuma explicação. Para não cair apoiou-se na primeira mesa que viu. O café não chegou a derramar, mas foi o bastante para assustar a Sandra e quando seus olhos perderam a nebulosidade a primeira coisa que viu foi o decote de Sandra. Sem entender muito bem o que se passava ouviu a moça lhe perguntar o senhor está bem? Precisa de alguma coisa? e achou melhor não responder, mas não lhe faltaram os pensamentos ruins, ruins não, ao menos indiscretos. Quando se aprumou percebeu que a repartição inteira e o pessoal de todos os escritórios olhavam-no com curiosidade e ele finalmente disse Obrigado, Sandra e tentou caminhar até a sua mesa, mas antes que pudesse dar um passo, notou que havia um rapaz com uma camisa de cor duvidosa, que em nada combinava com a gravata nem com o rapaz, a sua mesa estava ocupada. O gesto audacioso do rapaz lhe causou alguma raiva e ele sem pensar direito, como que protegendo o seu território, afinal o único que parecia pertencer ao senhor Meira, perguntou ao rapaz o que procurava e o rapaz respondeu com outra pergunta, um pois não, em que posso ajudá-lo? memorizado de cartilhas de boa etiqueta de atendimento e sem nenhuma intenção de parecer humano. Meira não se calou, já havia se recuperado da tontura e disse ao rapaz O senhor pode me ajudar devolvendo-me a minha mesa. A cara de interrogação do jovem fez o Meira se sentir uma confusa raiva que o fez atacar o jovem pela gravata, quase o enforcando.
Aos berros não aceitava perder a sua mesa. Afinal, só havia saído para pegar um café. Os outros curiosos que assistiam à cena grotesca correram para separar a briga enquanto um segurava o Meira, outro acudia o jovem e as mulheres gritavam. A maior ajuda que Sandra pôde conseguir foi chamar o segurança. Vieram em dupla. A situação estava tranqüilizada, mas o Meira ainda protestava por sua mesa. Como explicar que um borra-botas qualquer lhe tomasse a mesa, mesa que era sua e de onde ele podia ver tão bem o decote de Sandra, em tão pouco tempo no intervalo para o café. O jovem ainda esbaforido da briga arrumava as suas coisas que se espalharam por cima do teclado, derrubando porta-retratos, canetas e uma miniatura do Darth Vader. Nesse momento, o Meira percebeu que não havia mais coisas suas na mesa, que não havia a foto da mãe e de suas sobrinhas e outro ataque de histeria lhe tomou conta do cérebro. O segurança lhe agarrou depois de muitos gritos de onde estão as minhas coisas, o retrato de mamãe, as bebês, o que fez com elas. A repartição inteira agora estava atônita com a cena.
O gerente com todo o escândalo deixou a sua sala para gerenciar a situação. Você pode me explicar o que acontece aqui perguntou o careca com a frase que quase todos os chefes gostam de usar quando eles mesmos não sabem o que fazer. Eu trabalho aqui, essa mesa é minha, essa caneca é minha, cadê minha caneca? Sinto muito, mas o senhor está equivocado, o senhor não trabalha aqui, pelo menos não neste andar. Pode nos dizer o que deseja e explicar direitinho o porquê desta confusão toda. Creio que o senhor queria algo, mas os seus meios não são os mais adequados a ocasião disse mais eloqüentemente do que era o gerente da repartição. O Meira achou ter notado um suspiro e um arfar mais acelerado no decote de Sandra quando ela ouviu o gerente falando. Com toda a certeza esses dois têm um caso, interesseira safada, como eu não trabalho aqui, trabalho nessa mesa já há quatro anos, e você seu gerentezinho de merda nunca me dirigiu a palavra, nunca nem agradeceu a todos os relatórios e gráficos que eu envio para o seu email depois de cumprir horas e horas de serões e que você leva para a presidência como se fossem seus, seu safado. Você nem sabe o meu nome. Eu quero a minha mesa. E tira as mãos de mim, tira as mãos de mim que não sou vagabundo, eu trabalho aqui seu segurança de merda, olha o meu crachá, cadê o meu crachá, cadê o meu crachá. Por favor, tenha a bondade de acompanhar os seguranças até a saída ou eu vou ser obrigado a chamar a polícia. Vamos evitar isso, por favor. Por favor, acompanhe-nos. Eu trabalho aqui, alguém pegou o meu crachá eu quero a minha mesa. Então, recorreu à memória do Castro, Castro, fala para eles que eu trabalho aqui, que aquela mesa é minha, lembra que você segurou a porta do elevador para mim agora há pouco, Castro. E o Castro se limitou a fitá-lo de cima a baixo e acenou com a cabeça como quem diz que é caso perdido. O Meira saiu aos berros arrastado pelos dois brutamontes. Protestava e gritava gerentezinho de merda, Castro traidor, nerd desgraçado e vadia, vadia, vadia, eu sou o Meira. Todos se entreolharam: Meira? E o dia seguiria como se nada tivesse acontecido.
Depois de alguns murros dos seguranças que se divertiram bastante do décimo terceiro andar ao térreo, do térreo ao décimo terceiro e do décimo terceiro ao térreo novamente, ele foi atirado à calçada ameaçado de ir preso se retornasse. O Meira pôs as mãos nos rosto querendo entender porque as pessoas o tratavam como um estranho, um estranho que de fato nunca tinham visto, o que não era o seu caso. Parecia que ninguém se lembrava dele. Nem aquela menina da recepção, nem o segurança que abria a portinhola para ele todos os dias na última semanas. Todos tinham se esquecido dele. Procurou na carteira bilhetes de metrô que a empresa lhe pagava e não havia nenhum. Pensou nos seguranças, mas eles não lhe tinham tirado a carteira do bolso. Lembrou-se do crachá, e entendeu que da mesma forma misteriosa os bilhetes desapareceram. E todos os seus cartões e seu dinheiro. Pensou novamente nos seguranças, mas era impossível. Restava-lhe o seu RG com sua foto e seu nome Luís Carlos de Albuquerque Meira, é ele sabia quem era: Luís Carlos de Albuquerque Meira, o Meira, o Luisinho da sua mãe. A sua mãe, é claro, ela se lembraria dele, afinal, as mães nunca se esquecem dos filhos. Tinha que ligar, não tinha cartão, tinha que ir para casa, estava muito longe e sem condução. Decidiu ligar a cobrar do primeiro orelhão, ligou a mãe atendeu, ele chorou ao telefone e chamou por ela. Do outro lado a velha histérica xingava isso não é coisa de marmanjo da sua idade fazer, ficar passando trote assim, chorando no telefone dos outros, eu não sou sua mãe e não conheço nenhum Luisinho e bateu o telefone na sua cara. Ele caiu ali mesmo, ao pé do orelhão como um bêbado rasgado sem casa. Chorou mais ainda e o sol já era quase do meio dia.
Cambaleou até um banco, num parque próximo e ficou ali sentado algum tempo. Do nada, ele se deu conta que não sabia mais o caminho de casa, e começava a se esquecer do que estava fazendo ali. A voz da mãe ao telefone já não lhe parecia familiar, já não se lembrava da dela. Pegou a carteira e viu o seu RG. Não tinha mais foto e não tinha mais Luís Carlos de Albuquerque. Só ficou o Meira, mas quem era o Meira? Quem era o quê? Não se lembrava, não era mais nada. Pensou num decote que lhe pareceu familiar e desapareceu sentado no banco ao meio-dia em ponto.


Evandro Ferreira