terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Outro Café da Manhã

Foi com o alarido do canto de todos os galos daquela vizinhança mais o da casa que o dia começou às quatro da manhã. Vizinhança é o modo de dizer do povo dali, pois se considera vizinho já o que mora tão perto quanto os dez minutos contados na poeira e nas pouquíssimas cilindradas das motocicletas que põem desempregados os velhos jumentos.
As galinhas logo se despertaram com o chamado dos maridos, e com elas os primeiros passos na cozinha da casa iniciaram o ritual do primeiro café do dia. Dona Ana Josefa acordava todos os dias assim e, ainda meio sonâmbula, ia com a força de seus sessenta e cinco anos preparar o desjejum do marido: uma comida pesada para quem não tem o costume. Mas a paçoca de carne-seca e o café preto-petróleo (que assim ele gostava) servido na caneca de alumínio nos dão a entender que aquele homem de setenta e dois anos não iria fazer outra coisa senão se juntar a uma enxada, por vezes até mais companheira que Dona Ana Josefa. Sempre fora essa a sua vida, desde o casamento: o sol nunca se levantou antes dela e ela nunca reclamou. Aceitou cuidar do seu velho no dia em que aceitou viver com seu homem. Dona Ana Josefa olhou a réstia de luz que começava a entrar por debaixo da porta e pelas frestas da madeira que era a parede da cozinha e lamentou um pouquinho a sua vida pela primeira vez.
Era a filha mais velha de uma família que só foi concluída após morte do pai na boca de uma urutu quando ela já tinha quase dez anos de casamento. Foi nessa época que nasceu o último menino dos únicos três homens que demoraram a ter idade para ajudar ao pai na lida da terra. Assim, sobrou-lhe a ela a função. Cuidou das reses e ajudou ao pai em tudo, até a amansar boi carreiro. Acostumou-se logo com a vida de pouco brinquedo e de muito trabalho (mas tinha lá seus minutos de boneca de pano e peteca de palha de milho).
Luis Ubaldo foi a primeira coisa em que a menina realmente prestou atenção quando ele foi com o pai negociar duas novilhas. O jovem não olhou a menina com olhos de homem, mas lhe chamou a atenção a sua esperteza para a lida no campo. Luís Ubaldo logo voltou a procurar o pai de Ana Josefa. Primeiro a negócios que tratavam de terras e de cabeças de zebu a mando do pai, logo para uma visita à toa e outras e finalmente para lhe pedir a mão da menina. Não demorou muito para se entender com o pai. Com a filha já havia se entendido há bastante tempo com mais olhares e gestos que com palavras. Ele juntou o que tinha: o terreno, umas poucas reses e uma casinha recém-feita. Casaram-se e em menos tempo que o pai e que o sogro, tinham mais que os dois juntos.
Ela lamentou sua vida enquanto via o café passar como petróleo pelo coador:
― Meu Deus, quantos anos...
A palestra dos galos não acordou só a Dona Ana Josefa. Acordou também o seu Lua. Luís Ubaldo Aquino virou seu Lua assim que alguém atentou para o acróstico no seu nome de batismo que de certo não fora arquitetado pelo pai mais analfabeto que ele próprio, pois sequer o próprio nome sabia desenhar. Acordou também, mas, como sempre, ficava deitado ainda um bocado mais porque gostava de sentir o cheiro do café chegar ao travesseiro. Fora assim todos os dias há anos que ele não tinha a conta certa como Dona Ana Josefa: cinquenta e um.
Deixou-se ficar na cama sentindo o cheiro do café, mas, ao primeiro chamado de Dona Ana, levantou-se de pronto. No caminho entre o quarto e a mesa da cozinha, lavou o rosto, bochechou um pouco d’água, pôs a dentadura e se recompôs antes de se mostrar à mulher que fizera o mesmo ritual meia hora antes. O bom-dia usual dos dois sempre fora com os olhos – e assim foi.
Seu Lua comeu rápido, mas gastou o mesmo tempo que gastava todos os dias. Não sabia ao certo quanto tempo, mas sabia que era o mesmo porque o sol já subia mais depressa e a luz começava a entrar pelas frestas da madeira da janela. Não sabia o horário. Não tinha relógio. Nunca teve.
Ele limpou-se das partículas de farinha que lhe sobraram ao bigode. Mirou a Dona Ana com um amor terno, que assim poucas vezes ela tinha se dado conta. Olhou com o canto avermelhado do dos olhos, avermelhados de sono, de sonho, de gratidão. Quem sabe? Levantou-se com um meio sorriso da cadeira, o rápido que lhe permitiam suas pernas e pensou que as duas juntas tinham cento e quarenta e quatro anos. Esse não foi um pensamento repentino, pois a conta ele fazia todos os dias há pelo menos vinte anos. Há vinte anos, Deus meu. Vinte anos e ele não se esquecia. O meio riso ficou. O olho se avermelhou mais e ele tomou o chapéu pôs a mão na tramela, olhou rápida e disfarçadamente para dentro do cômodo e viu as poucas coisas que tinha, olhou Dona Ana nos olhos dizendo com eles que não se demorava ao almoço. E saiu fechando a porta atrás de si.
Ela compreendeu que o meio sorriso se perdeu e que os olhos ficaram avermelhados não foi por causa dos cento e quarenta e quatro anos das pernas. Era maior o motivo. Ela sabia que os olhos rápidos do seu Lua passaram pelo cômodo buscando mais gente que um casal de velhos. Ela sabia também que mesmo se os seis filhos estivessem ali não seriam os sete vingados de nove que ela pariu. Os sete que o seu Lua carregou. Os sete que ele criou. Doía ao velho a falta do mais novo. Doía-lhe a ponta de remorso. Isso tudo ela sabia, mas não falava.
Os olhos dela ficaram vermelhos também com a lembrança do Jorge saindo de casa abaixo da cinta do pai vinte anos antes. Seu Lua não entendeu o rapaz. A mãe entendia, não aceitava, mas entendia. Seu Lua o mandou embora com ódio e vergonha e ele foi para a capital. Um amigo que ele arranjou lá o ajudou e ele estudou, estudou e ia ser advogado. Mas se meteu com os comunistas. Foi preso e nunca mais foi visto. Ela nunca o pôde enterrar e, apesar de sonhar com ele vivo, sabe bem que ele está morto. Ela não entende direito, mas lhe parece que o negócio da repressão, da tortura, da ditadura, que padre sempre condenava no domingo (sem falar demais) é que lhe tinha levado seu mais novo. Ela também sabia que o Seu Lua perdoaria o filho se ele voltasse no dia seguinte, mas o Jorge teimoso não voltou nunca mais. O seu Alfredo, dono do secos-e-molhados e que lia o jornal todo dia e contava tudo para o povo o que ele entendia, falou que um bando de vagabundo tinha sido preso e tinha sumido também e que os artistas e um monte gente desocupada até marcharam para achar os vagabundos. Até podia ser tudo vagabundo, mas o Jorge não era. Era o filho dela e ela o conhecia. Ela sabia bem como o tinha criado. Ela sabia que ele e o pai se entenderiam. Ela sabia que o olho vermelho do Seu Lua era uma lágrima diária de saudade do menino e que teimava em não cair.
Respirou fundo como fazia todos os dias há vinte anos. Conversou alguma coisa com a nossa senhora e foi cuidar do almoço que o velho não tardaria em voltar da roça, porque ele somava a idade das pernas, mas fazia questão de se esquecer de colocar nessa conta a idade de todo o resto. Ela sorriu e desta vez não lamentou nada.
Evandro Ferreira

3 comentários:

Priscila disse...

Palavras que despertam a curiosidade, acalmam e conseguem traduzir muito bem os sentimentos. Adorei o conto, parabéns!

Poem disse...

Café...petroleo...combinação perfeita. Texto denso, muito bem construido, vc tem uma maturidade fantástica e uma sacação para retratar o dia a dia. Parabéns!

Episódio Final disse...

Muito bacana Evandro, muito legal mesmo!