sábado, 19 de dezembro de 2009

Poeira Vermelha

As ruínas lhe chamaram a atenção e era tudo quase que um cenário que guerra. Meias-paredes ainda ficavam quietas como se insistissem em sustentar a casa que já não existia mais. Um animal sem dono aparecia farejando o rasto do homem que o alimentara e que por um motivo ignorado o abandonara ali nos restos de tijolos e de ferro retorcido. O homem não estava mais. A casa do homem também não. Ao cão perdido ele não deu muita atenção. Antes, observou os meninos que corriam arrastando sacos pesando o metal que conseguiam recolher dentre os restos de cimento desmanchado. Logo os meninos sumiram na poeira, sujos como a poeira. Vermelhos. Logo as vozes dos meninos sumiram na poeira. Ele apurou os ouvidos a buscar as vozes que arrastavam os sacos. Ouviu somente tratores. Não soube contar quantos anos os motores o fizeram voltar ao passado. Não há data certa para as memórias de menino, mas a lembrança era clara: a mesma poeira, os meninos muito vermelhos como aqueles, os tratores e ele mesmo menino.
O progresso. Era o progresso chegando ao bairro novamente como havia chegado quando ele era uma criança. O bairro era maior, quer dizer, tinha mais espaço e menos pessoas: um grande playground para os aventureiros meninos. Mato, brejo, bichos e imaginação. Alguns perigos: estrada de terra e caminhão. A mãe de um gritando não vá tão longe. A de outro chamando vem tomar banho. Um que passava correndo outro que se escondia, outro que era polícia e mais um que era ladrão. O valo já era meio poluído, mas os gurus barrigudinhos eram resistentes e presa fácil para virar peixe de aquário improvisado num vidro qualquer de Hellmann’s. Não raro, aparecia um peixe maior e virava brinquedo, porque comer ninguém tinha coragem. Podia fazer mal. Mas o que valia era brincar e desbravar o bairro de estilingue em punho ou correndo atrás de uma bola. Aquele lugar era um brinquedo grande. E o progresso prometeu melhorar o chão da antiga estrada de Sônia Maria cobrindo o vermelho esburacado com o preto do asfalto quente.
Não demorou nada, os políticos foram ao bairro anunciar a novidade. O bairro se desenvolveria, pois em breve estaria ali todo aparato necessário para crescer. O terreno seria preparado. A terra vermelha seria coberta de uma camada de brita sobre qual seria deitada uma camada eterna de asfalto. Chegaram primeiro os carros que trouxeram os agrimensores. Esses mediram tudo. Perguntaram tudo. Que bom. Era possível alargar a estrada sem mexer com as casas que a margeavam. Apenas um pouco mais que uma dezena de casas foi desapropriada porque a ponte era muito velha e a nova logo estaria pronta e era preciso mudar de lugar o caminho. E todos fora, chegaram os tratores. Primeiro uma retro-escavadeira para pôr as casas no chão. E toda gente e toda criançada foi lá ver as casas serem derrubadas. Depois chegaram a plaina, a pá-carregadeira e os basculantes. A plaina abria caminho forçadamente fincando a garra das suas esteiras no chão e empurrando ia revolvendo a terra. A pá carregadeira, sem esforço, juntava a terra solta e o entulho que foi um pouco mais que uma dezena de casas de alguém e enchia os basculantes que levavam tudo, um após o outro, não se soube nunca para onde. Os meninos se divertiam observando extasiados aqueles monstros amarelos e poderosos que faziam tremer o chão e rugiam ao comando do homem que acelerava. Definitivamente os tratores eram as estrelas.
Não se nota o perigo que há em certas coisas até que ele assovie ao ouvido de alguém. O cavalo morto era branco e estava dividido ao meio. Não soube jamais que monstro daqueles havia cortado o pobre animal e por medo tentou não ignorar a mãe que lhe chamava a atenção para o acidente: podia ser você ou qualquer de seus amigos. Graças a Deus que foi um cavalo. Coitado... E você está proibido de chegar perto da estrada. Agora é muito perigoso. Ele ouviu a mãe e pensou no cavalo. Pensou que sua mãe era a única a se preocupar com o cavalo morto, pois a partir daquele dia era ele o único menino que não ia ver os tratores fazendo o seu trabalho. Sentiu-se só nos primeiros dias e teve inveja dos amigos que voltavam vermelhos. Mas se voltavam, era porque vez por outra alguém da obra dava conta deles e os expulsava de lá. Ele desobedeceu à mãe um dia e voltou a ver os tratores. O trabalho da plaina e da pá-carregadeira estava finalizado. O que havia sobrado do entulho para remover era trabalho fácil para uma mera retro-escavadeira e um basculante. Os outros basculantes agora traziam a brita que seria assentada na terra vermelha. E já haviam chegado o rolo-compactador que só serve para afirmar a terra fofa e a patrol, a moto-niveladora. O maior de todos aqueles monstros com certeza. Esguia como um inseto gigantesco ela espalhava a brita sem esforço. Regulava a estrada e lhe dava forma de estrada. Neste dia sim valeu a pena sofrer as consequências da bronca da mãe por ter ido ver aquela máquina nova. Mais tarde ele pediu uma para o pai. Ganhou uma de brinquedo e ficou feliz.
Um tempo depois, ouviu que comentavam de um menino que fora buscar o pão para a mãe: morava perto da obra; mas que louca essa mulher que manda uma criança fazer trabalho de gente adulta; tão pequenininho assim, ó. E quis saber mais sobre o menino do pão. Fugiu da mãe e foi com outros garotos até a obra. Era verdade a história do pão. O saco estava lá no chão e havia pão ali, aqui e acolá. O menino estava coberto com jornal. A cabeça estava. Mais comentários. Não tem nem meia hora. Foi a patrol? Foi. Vinha de marcha à ré, ele correu atravessando a rua e o chinelo... Tropeçou no chinelo. No próprio chinelo. Caiu? É, caiu. Meu Deus. O tratorista foi para o hospital. Estava desesperado o coitado. Ele não viu? Não viu, não dava. O menino também não viu nada, não é? É... Estava correndo. Ele foi buscar pão... Todos os comentários, todos os rostos eram compaixão e assombro. A mãe do menino desesperava e chamava pelo filho e acusava os homens das máquinas e se acusava. Foi um acidente. Um acidente. Tentava conseguir passagem entre o povo entre todos os outros curiosos. E outro menino curioso quase dividiu o mesmo espaço com ele. Não o conhecia. Conheceu-o depois e ficaram amigos. Mais foram anos depois. E mais depois ainda, um dia, comentaram do menino atropelado pela patrol sem saber que estavam lá quase juntos e que talvez tenham pedido licença um ao outro ou se empurrado simplesmente com a boa educação dos meninos curiosos. Eram meninos. Como aquele embaixo do jornal. Ele só tinha ido buscar pão. Ele não quis ver as máquinas. Ele só morava ali e elas vieram.
Lembrou-se de que, depois do menino atropelado, não voltou a ficar perto das máquinas. Até chegou o rolo-compactador dos que só servem para alisar o asfalto, mas esse ele não quis ver. Os outros meninos continuaram indo ver as máquinas enquanto elas estiveram ali e já do menino dos pães ninguém se lembrava. Quando eles voltavam, voltavam meio pretos agora. O asfalto gruda na gente mais que a terra. Foi essa, então, a mais recente descoberta. Ele só viu depois o asfalto terminado, pintado e bonito com os carros que começavam a descobrir o novo caminho, uma nova rota. Olhou novamente a poeira do presente e sentiu saudade de todo aquele lugar do passado. A terra vermelha agora nesta segunda investida do progresso, talvez desapareça se transformando na mesma pasta negra que gruda em tudo e não sai. Agora o que está ou estará no chão não é somente uma dezena de casas, mas, quiçá, milhares. O progresso desta vez não é uma tímida e sinuosa estradinha de asfalto de duas faixas, e sim uma rodovia estadual que atropelará todo o lugar que ele conheceu como o seu quintal.
O vento levantou-se contra ele e lhe encheu os olhos com aquela poeira vermelha. E seus olhos há muito empenhados em traí-lo aproveitaram o ardume que a terra causou como desculpa e ele disfarçadamente chorou e partiu para a sua nova casa.


Evandro Ferreira

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Outro Café da Manhã

Foi com o alarido do canto de todos os galos daquela vizinhança mais o da casa que o dia começou às quatro da manhã. Vizinhança é o modo de dizer do povo dali, pois se considera vizinho já o que mora tão perto quanto os dez minutos contados na poeira e nas pouquíssimas cilindradas das motocicletas que põem desempregados os velhos jumentos.
As galinhas logo se despertaram com o chamado dos maridos, e com elas os primeiros passos na cozinha da casa iniciaram o ritual do primeiro café do dia. Dona Ana Josefa acordava todos os dias assim e, ainda meio sonâmbula, ia com a força de seus sessenta e cinco anos preparar o desjejum do marido: uma comida pesada para quem não tem o costume. Mas a paçoca de carne-seca e o café preto-petróleo (que assim ele gostava) servido na caneca de alumínio nos dão a entender que aquele homem de setenta e dois anos não iria fazer outra coisa senão se juntar a uma enxada, por vezes até mais companheira que Dona Ana Josefa. Sempre fora essa a sua vida, desde o casamento: o sol nunca se levantou antes dela e ela nunca reclamou. Aceitou cuidar do seu velho no dia em que aceitou viver com seu homem. Dona Ana Josefa olhou a réstia de luz que começava a entrar por debaixo da porta e pelas frestas da madeira que era a parede da cozinha e lamentou um pouquinho a sua vida pela primeira vez.
Era a filha mais velha de uma família que só foi concluída após morte do pai na boca de uma urutu quando ela já tinha quase dez anos de casamento. Foi nessa época que nasceu o último menino dos únicos três homens que demoraram a ter idade para ajudar ao pai na lida da terra. Assim, sobrou-lhe a ela a função. Cuidou das reses e ajudou ao pai em tudo, até a amansar boi carreiro. Acostumou-se logo com a vida de pouco brinquedo e de muito trabalho (mas tinha lá seus minutos de boneca de pano e peteca de palha de milho).
Luis Ubaldo foi a primeira coisa em que a menina realmente prestou atenção quando ele foi com o pai negociar duas novilhas. O jovem não olhou a menina com olhos de homem, mas lhe chamou a atenção a sua esperteza para a lida no campo. Luís Ubaldo logo voltou a procurar o pai de Ana Josefa. Primeiro a negócios que tratavam de terras e de cabeças de zebu a mando do pai, logo para uma visita à toa e outras e finalmente para lhe pedir a mão da menina. Não demorou muito para se entender com o pai. Com a filha já havia se entendido há bastante tempo com mais olhares e gestos que com palavras. Ele juntou o que tinha: o terreno, umas poucas reses e uma casinha recém-feita. Casaram-se e em menos tempo que o pai e que o sogro, tinham mais que os dois juntos.
Ela lamentou sua vida enquanto via o café passar como petróleo pelo coador:
― Meu Deus, quantos anos...
A palestra dos galos não acordou só a Dona Ana Josefa. Acordou também o seu Lua. Luís Ubaldo Aquino virou seu Lua assim que alguém atentou para o acróstico no seu nome de batismo que de certo não fora arquitetado pelo pai mais analfabeto que ele próprio, pois sequer o próprio nome sabia desenhar. Acordou também, mas, como sempre, ficava deitado ainda um bocado mais porque gostava de sentir o cheiro do café chegar ao travesseiro. Fora assim todos os dias há anos que ele não tinha a conta certa como Dona Ana Josefa: cinquenta e um.
Deixou-se ficar na cama sentindo o cheiro do café, mas, ao primeiro chamado de Dona Ana, levantou-se de pronto. No caminho entre o quarto e a mesa da cozinha, lavou o rosto, bochechou um pouco d’água, pôs a dentadura e se recompôs antes de se mostrar à mulher que fizera o mesmo ritual meia hora antes. O bom-dia usual dos dois sempre fora com os olhos – e assim foi.
Seu Lua comeu rápido, mas gastou o mesmo tempo que gastava todos os dias. Não sabia ao certo quanto tempo, mas sabia que era o mesmo porque o sol já subia mais depressa e a luz começava a entrar pelas frestas da madeira da janela. Não sabia o horário. Não tinha relógio. Nunca teve.
Ele limpou-se das partículas de farinha que lhe sobraram ao bigode. Mirou a Dona Ana com um amor terno, que assim poucas vezes ela tinha se dado conta. Olhou com o canto avermelhado do dos olhos, avermelhados de sono, de sonho, de gratidão. Quem sabe? Levantou-se com um meio sorriso da cadeira, o rápido que lhe permitiam suas pernas e pensou que as duas juntas tinham cento e quarenta e quatro anos. Esse não foi um pensamento repentino, pois a conta ele fazia todos os dias há pelo menos vinte anos. Há vinte anos, Deus meu. Vinte anos e ele não se esquecia. O meio riso ficou. O olho se avermelhou mais e ele tomou o chapéu pôs a mão na tramela, olhou rápida e disfarçadamente para dentro do cômodo e viu as poucas coisas que tinha, olhou Dona Ana nos olhos dizendo com eles que não se demorava ao almoço. E saiu fechando a porta atrás de si.
Ela compreendeu que o meio sorriso se perdeu e que os olhos ficaram avermelhados não foi por causa dos cento e quarenta e quatro anos das pernas. Era maior o motivo. Ela sabia que os olhos rápidos do seu Lua passaram pelo cômodo buscando mais gente que um casal de velhos. Ela sabia também que mesmo se os seis filhos estivessem ali não seriam os sete vingados de nove que ela pariu. Os sete que o seu Lua carregou. Os sete que ele criou. Doía ao velho a falta do mais novo. Doía-lhe a ponta de remorso. Isso tudo ela sabia, mas não falava.
Os olhos dela ficaram vermelhos também com a lembrança do Jorge saindo de casa abaixo da cinta do pai vinte anos antes. Seu Lua não entendeu o rapaz. A mãe entendia, não aceitava, mas entendia. Seu Lua o mandou embora com ódio e vergonha e ele foi para a capital. Um amigo que ele arranjou lá o ajudou e ele estudou, estudou e ia ser advogado. Mas se meteu com os comunistas. Foi preso e nunca mais foi visto. Ela nunca o pôde enterrar e, apesar de sonhar com ele vivo, sabe bem que ele está morto. Ela não entende direito, mas lhe parece que o negócio da repressão, da tortura, da ditadura, que padre sempre condenava no domingo (sem falar demais) é que lhe tinha levado seu mais novo. Ela também sabia que o Seu Lua perdoaria o filho se ele voltasse no dia seguinte, mas o Jorge teimoso não voltou nunca mais. O seu Alfredo, dono do secos-e-molhados e que lia o jornal todo dia e contava tudo para o povo o que ele entendia, falou que um bando de vagabundo tinha sido preso e tinha sumido também e que os artistas e um monte gente desocupada até marcharam para achar os vagabundos. Até podia ser tudo vagabundo, mas o Jorge não era. Era o filho dela e ela o conhecia. Ela sabia bem como o tinha criado. Ela sabia que ele e o pai se entenderiam. Ela sabia que o olho vermelho do Seu Lua era uma lágrima diária de saudade do menino e que teimava em não cair.
Respirou fundo como fazia todos os dias há vinte anos. Conversou alguma coisa com a nossa senhora e foi cuidar do almoço que o velho não tardaria em voltar da roça, porque ele somava a idade das pernas, mas fazia questão de se esquecer de colocar nessa conta a idade de todo o resto. Ela sorriu e desta vez não lamentou nada.
Evandro Ferreira