quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Meira?

Como todos os dias, tirando os sábados e os domingos, dos últimos quatro anos, Meira subiu as escadas do metrô, atravessou a rua e entrou no primeiro edifício depois de dobrar a esquina à esquerda, cumprimentou de soslaio a moça da recepção, apresentou o seu crachá para o segurança, pois havia duas semanas o seu cartão não destravava a catraca que dá acesso ao corredor dos elevadores, o moço acionou um mecanismo, sorriu-lhe um tímido bom-dia e liberou a passagem pela portinhola dos visitantes e lá foi o Meira correr atrás do elevador de que lhe seguravam a porta. A mão na porta era o Castro que trabalhava a duas mesas à esquerda do Meira na repartição cheia de baias onde somente os gerentes ou maiores tinham uma sala individual, mas as mãos dos dois colegas de há três anos não se tocaram e o gesto mais cordial foi o sorriso de agradecimento do Meira ou talvez aquele olá entre os dentes sem vontade de falar comum de todos.
A viagem até o décimo terceiro durou eternamente mais com esse colega do que duraria com a colega da direita, a Sandra. Meira olhou para a foto do seu crachá que ainda não tivera tempo de guardar, olhou para o seu nome e percebeu que o senhor Luís Carlos de Albuquerque Meira nunca tivera coragem de falar com a moça e sem pensar duas vezes disse sem olhar para o colega Acho que o ar condicionado está desregulado. Como o outro respondera Estou bem, ele sorriu de canto de lábio, fingiu aceitar a resposta e imaginou Sandra reclamando do frio apenas para chamar a atenção para o seu decote. Quando o elevador parou no andar, os dois não tinham falado mais sobre o ar condicionado nem sobre o futebol do final de semana, que pouco lhes interessava, muito menos sobre Sandra. Meira seguiu pelo corredor assim que deu passagem ao seu colega, retribuindo-lhe a gentileza da mão na porta do elevador. Chegou a sua mesa, ligou o computador, cumprimentou os colegas mais próximos e caminhou com passos decididos até a máquina do café. Escolheu café puro porque não havia creme, mas lembrou-se de colocar adoçante em vez de açúcar que não faz muito bem. Da máquina de café acenou ao seu gerente que acabara de levantar da sua mesa, grande, espaçosa e com um monitor de LCD. Definitivamente esse careca tinha alguma coisa com a Sandra pensou o Meira sorvendo um gole do café que lhe queimou a língua.
É hora do trabalho. Ao caminhar de volta a sua mesa, Meira sentiu uma estranha tontura como se o piso lhe faltasse e a cabeça crescesse sem nenhuma explicação. Para não cair apoiou-se na primeira mesa que viu. O café não chegou a derramar, mas foi o bastante para assustar a Sandra e quando seus olhos perderam a nebulosidade a primeira coisa que viu foi o decote de Sandra. Sem entender muito bem o que se passava ouviu a moça lhe perguntar o senhor está bem? Precisa de alguma coisa? e achou melhor não responder, mas não lhe faltaram os pensamentos ruins, ruins não, ao menos indiscretos. Quando se aprumou percebeu que a repartição inteira e o pessoal de todos os escritórios olhavam-no com curiosidade e ele finalmente disse Obrigado, Sandra e tentou caminhar até a sua mesa, mas antes que pudesse dar um passo, notou que havia um rapaz com uma camisa de cor duvidosa, que em nada combinava com a gravata nem com o rapaz, a sua mesa estava ocupada. O gesto audacioso do rapaz lhe causou alguma raiva e ele sem pensar direito, como que protegendo o seu território, afinal o único que parecia pertencer ao senhor Meira, perguntou ao rapaz o que procurava e o rapaz respondeu com outra pergunta, um pois não, em que posso ajudá-lo? memorizado de cartilhas de boa etiqueta de atendimento e sem nenhuma intenção de parecer humano. Meira não se calou, já havia se recuperado da tontura e disse ao rapaz O senhor pode me ajudar devolvendo-me a minha mesa. A cara de interrogação do jovem fez o Meira se sentir uma confusa raiva que o fez atacar o jovem pela gravata, quase o enforcando.
Aos berros não aceitava perder a sua mesa. Afinal, só havia saído para pegar um café. Os outros curiosos que assistiam à cena grotesca correram para separar a briga enquanto um segurava o Meira, outro acudia o jovem e as mulheres gritavam. A maior ajuda que Sandra pôde conseguir foi chamar o segurança. Vieram em dupla. A situação estava tranqüilizada, mas o Meira ainda protestava por sua mesa. Como explicar que um borra-botas qualquer lhe tomasse a mesa, mesa que era sua e de onde ele podia ver tão bem o decote de Sandra, em tão pouco tempo no intervalo para o café. O jovem ainda esbaforido da briga arrumava as suas coisas que se espalharam por cima do teclado, derrubando porta-retratos, canetas e uma miniatura do Darth Vader. Nesse momento, o Meira percebeu que não havia mais coisas suas na mesa, que não havia a foto da mãe e de suas sobrinhas e outro ataque de histeria lhe tomou conta do cérebro. O segurança lhe agarrou depois de muitos gritos de onde estão as minhas coisas, o retrato de mamãe, as bebês, o que fez com elas. A repartição inteira agora estava atônita com a cena.
O gerente com todo o escândalo deixou a sua sala para gerenciar a situação. Você pode me explicar o que acontece aqui perguntou o careca com a frase que quase todos os chefes gostam de usar quando eles mesmos não sabem o que fazer. Eu trabalho aqui, essa mesa é minha, essa caneca é minha, cadê minha caneca? Sinto muito, mas o senhor está equivocado, o senhor não trabalha aqui, pelo menos não neste andar. Pode nos dizer o que deseja e explicar direitinho o porquê desta confusão toda. Creio que o senhor queria algo, mas os seus meios não são os mais adequados a ocasião disse mais eloqüentemente do que era o gerente da repartição. O Meira achou ter notado um suspiro e um arfar mais acelerado no decote de Sandra quando ela ouviu o gerente falando. Com toda a certeza esses dois têm um caso, interesseira safada, como eu não trabalho aqui, trabalho nessa mesa já há quatro anos, e você seu gerentezinho de merda nunca me dirigiu a palavra, nunca nem agradeceu a todos os relatórios e gráficos que eu envio para o seu email depois de cumprir horas e horas de serões e que você leva para a presidência como se fossem seus, seu safado. Você nem sabe o meu nome. Eu quero a minha mesa. E tira as mãos de mim, tira as mãos de mim que não sou vagabundo, eu trabalho aqui seu segurança de merda, olha o meu crachá, cadê o meu crachá, cadê o meu crachá. Por favor, tenha a bondade de acompanhar os seguranças até a saída ou eu vou ser obrigado a chamar a polícia. Vamos evitar isso, por favor. Por favor, acompanhe-nos. Eu trabalho aqui, alguém pegou o meu crachá eu quero a minha mesa. Então, recorreu à memória do Castro, Castro, fala para eles que eu trabalho aqui, que aquela mesa é minha, lembra que você segurou a porta do elevador para mim agora há pouco, Castro. E o Castro se limitou a fitá-lo de cima a baixo e acenou com a cabeça como quem diz que é caso perdido. O Meira saiu aos berros arrastado pelos dois brutamontes. Protestava e gritava gerentezinho de merda, Castro traidor, nerd desgraçado e vadia, vadia, vadia, eu sou o Meira. Todos se entreolharam: Meira? E o dia seguiria como se nada tivesse acontecido.
Depois de alguns murros dos seguranças que se divertiram bastante do décimo terceiro andar ao térreo, do térreo ao décimo terceiro e do décimo terceiro ao térreo novamente, ele foi atirado à calçada ameaçado de ir preso se retornasse. O Meira pôs as mãos nos rosto querendo entender porque as pessoas o tratavam como um estranho, um estranho que de fato nunca tinham visto, o que não era o seu caso. Parecia que ninguém se lembrava dele. Nem aquela menina da recepção, nem o segurança que abria a portinhola para ele todos os dias na última semanas. Todos tinham se esquecido dele. Procurou na carteira bilhetes de metrô que a empresa lhe pagava e não havia nenhum. Pensou nos seguranças, mas eles não lhe tinham tirado a carteira do bolso. Lembrou-se do crachá, e entendeu que da mesma forma misteriosa os bilhetes desapareceram. E todos os seus cartões e seu dinheiro. Pensou novamente nos seguranças, mas era impossível. Restava-lhe o seu RG com sua foto e seu nome Luís Carlos de Albuquerque Meira, é ele sabia quem era: Luís Carlos de Albuquerque Meira, o Meira, o Luisinho da sua mãe. A sua mãe, é claro, ela se lembraria dele, afinal, as mães nunca se esquecem dos filhos. Tinha que ligar, não tinha cartão, tinha que ir para casa, estava muito longe e sem condução. Decidiu ligar a cobrar do primeiro orelhão, ligou a mãe atendeu, ele chorou ao telefone e chamou por ela. Do outro lado a velha histérica xingava isso não é coisa de marmanjo da sua idade fazer, ficar passando trote assim, chorando no telefone dos outros, eu não sou sua mãe e não conheço nenhum Luisinho e bateu o telefone na sua cara. Ele caiu ali mesmo, ao pé do orelhão como um bêbado rasgado sem casa. Chorou mais ainda e o sol já era quase do meio dia.
Cambaleou até um banco, num parque próximo e ficou ali sentado algum tempo. Do nada, ele se deu conta que não sabia mais o caminho de casa, e começava a se esquecer do que estava fazendo ali. A voz da mãe ao telefone já não lhe parecia familiar, já não se lembrava da dela. Pegou a carteira e viu o seu RG. Não tinha mais foto e não tinha mais Luís Carlos de Albuquerque. Só ficou o Meira, mas quem era o Meira? Quem era o quê? Não se lembrava, não era mais nada. Pensou num decote que lhe pareceu familiar e desapareceu sentado no banco ao meio-dia em ponto.


Evandro Ferreira

Um comentário:

Poem disse...

Olá amigo!
Gostei muito do texto...pretendo comentar melhor, mas garanto q seu estilo me encanta cada vez mais.
Beijos!