quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A Morte do Matador

Pilar não é tipo de cidade que se possa chamar de cidade grande, mas também não é uma típica cidade interiorana padrão. É interessante como hoje, neste século, ela consegue absorver características de grande metrópole e de cidade cenográfica de westerns. Não sei exatamente como explicar essa mistura estranha. Só sei dizer que ela tem tudo o que esses dois extremos têm de melhor. Pelo menos era assim até antes de me mudar e acho que não mudou muita coisa. Os trens continuam indo e vindo, levando e trazendo o povo. Espera. Acho que os trens explicam essa ambiguidade citadina. As pessoas praticamente abandonam a cidade todos os dias pela manhã e regressam somente à tarde, quase à noite. Isso causa um imenso engarrafamento de gente apressada, motorizada ou a pé, e nesses horários é que Pilar lembra uma São Paulo. Mas no período entre o começo da manhã e o final da tarde, quase não há ninguém na cidade, o que dá a sensação de abandono, de cidade fantasma e fez alguém, entendido em densidade demográfica, cunhar o termo Cidade Dormitório. É isso o que Piliar é, Cidade Dormitório. Ou era até antes de eu me mudar de lá.

Pode ser que alguma coisa tenha mudado da Pilar onde nasci para a Pilar deste século. Meu pai chegou à cidade vindo do sul não sei por que razão. Não havia nada lá. Nada a não ser um terreno que ele comprou de um parente andado que garantiu que o lugar era bom de viver. Acho que havia sonhos em Pilar e meu pai chegou ali junto da minha mãe e dos meus irmãos mais velhos. Eu já nasci lá, um legítimo pilarense. Ele me dizia que quando chegou, a cidade ainda era mais tranquila. Isso lá pela época do golpe militar. Por muitos anos meu pai foi empregado de inúmeras empresas em São Paulo. Isso fez com que ele passasse a maior parte do tempo fora de Pilar e longe de minha mãe e dos meus irmãos. Mas, no começo dos anos 80, ele foi afastado do seu último emprego por um problema de saúde que o tornou um pensionista do governo, como ele dizia. Odiava isso. Sentia-se inválido. Acho que por isso, mais que por necessidade, decidiu abrir o bar perto do campo de jogo da Sociedade Esportiva Vitoriana, que tinha esse nome não porque vencia muito, mas porque o bairro se chamava Vila Rainha Vitória. É no bar que a minha memória começa de fato.

A ideia do bar nunca foi exatamente aceita por minha mãe, mas pelo menos ela tinha meu pai por perto, coisa que desde nunca havia acontecido. Mas lidar com tantas pessoas de, como ela dizia, má fama era realmente assustador para ela. Os negócios começaram bem e a rotatividade de cliente ao balcão era impressionante. Sobretudo nos domingos de jogo e principalmente quando a Vitoriana de fato vencia. O verde e o branco se espalhavam por dentro do bar em meio a fotografias dos times memoráveis na parede e dos poucos troféus de festivais que eram expostos nas prateleiras ao lado de garrafas de velho barreiro e dos potes com cambuci curtido em cachaça de alambique. Lembro-me bem de que os objetos que rendiam mais histórias eram a foto do time de 87 e o seu troféu de vice-campeão municipal. Era pequeno na época para entender, mas todos dizem que o título foi perdido de mão frente ao Desportivo Assis Brasil com um gol do Leiva e que o time vitoriano era o melhor da história e, a exemplo da seleção de 78, o campeão moral. Meu irmão era o ponta-esquerda na época. Acho que ele ainda hoje comenta essa derrota amarga, porque às vezes quando conversávamos ainda repetia essa história.
O time era uma parte importante da história do bar e da minha, já que atuei como um meia-atacante do mais sem jeito (quase sempre fiquei na reserva da Durval) até que desisti ainda aos 17 anos. Mas o que realmente me chamava à atenção eram os personagens que frequentavam o balcão de papai. Quase posso vê-los nas mesinhas de metal. O Lóris era um holandês vermelho, um tipo estranho que falava pelas ventas loroteando para divertir os amigos. O Seu Augusto, durante vinte e cinco anos mais ou menos (desde antes de mim), sempre chegava com sua bengalinha a passo lento e religiosamente no mesmo horário para se encostar ao balcão e beber rabo¬-de-galo. Eu mesmo o esperei com o rabo-de-galo pronto na tarde do dia anterior ao da sua morte. O Lázaro e o Estevão eram dois irmãos. Eram jovens, gêmeos e bebiam com uma voracidade inconcebível. Às vezes caíam juntos, às vezes iam se escorando um no outro e pareciam siameses. O Pernambuco curtiu tanto tempo uma cirrose que me lembro dos outros apostando quando seria sua morte, mas foi o último a morrer. O Conterrâneo contava suas histórias de participação em shows de calouros e essas histórias eram a única coisa que ele sabia fazer de especial. O Jordão gaguejava quando sóbrio, mas era o mais eloquente depois da segunda cana. O Veloso reafirmava sempre a importância de um homem ter sangue nos colhões. E meu pai os servia a todos e nenhum deles lhe devia. Havia sim muita gente que merecia uma narrativa detalhada, mas um deles me interessa mais que os outros.

Laércio. Nenhum era o bêbado mais caricato que ele. Aquele que fala mais que todos e que sabe mais que todos. Que é chato como um bêbado, mas não havia quem não gostasse dele. Tinha uma facilidade lingüística fantástica. Narrava as histórias que vivia com uma emoção de escritor fracassado. Se as tinha vivido, ouvido, visto ou simplesmente aumentado não interessava: todos paravam para ouvi-lo. Ademais do hábito de falar compulsivamente, era imbatível na sinuca. Enfim, não são essas as características que me fazem falar dele, mas sim uma improvável lição de hombridade.
O que aconteceu foi que certa vez um sujeito conhecido como Galo Cego, dono de boca e matador evidente por pouca coisa, não gostou de alguma coisa que não sei o que foi que o Laércio teria dito a mais sobre ele em uma de suas histórias. O homem entrou no bar de repente com sua ginga de malandro e seus olhos miúdos detrás das lentes grossas dos óculos fundo-de-garrafa. Lembro-me da cena toda que vi por detrás do baleiro. Junto dele, entrou também o Celso que era algo assim como o seu escudeiro, ou melhor, carregador de armas e guarda-costas, pois foi o método que Galo Cego encontrara de ter um olho às costas e escapar de um flagrante por porte de arma caso a polícia o pegasse. O objetivo da sua visita ficou claro para todos quando ele interrompeu a jogada do Laércio ao retirar a bola branca da mesa: “pudim de pinga de merda”. Demorei a entender que não existia uma pinga feita de merda (o que me pareceu asqueroso na hora) e que tudo foi por causa das palavras mal escolhidas. Depois da ofensa, o único movimento que Laércio fez foi assentir com a cabeça como se dissesse “pois não?” e se manteve firme olhando para o agressor. Galo cego cobrou-lhe explicações não sei sobre o quê, pois o desgraçado além da deficiência visual construía frases com nenhum significado possível para um garoto de oito anos.

O Galo olhou a sua volta como que procurando os rostos apavorados dos outros presentes. Ninguém, nem o Celso, conseguia manter a mesma firmeza do Laércio e isso incomodou profundamente o Galo Cego que olhou para o meu pai e ordenou que ele entregasse cinco fichas do bilhar. Acho que entendi o que ele queria. Mataria o Laércio que qualquer forma, mas precisava antes humilhá-lo e pôs as cinco fichas sobre a borda da mesa já com um taco escolhido. Galo Cego perdeu uma a uma as fichas até a terceira para um Laércio que jogou como nunca vi. Ficou sóbrio de uma hora para outra, como uma por uma cura divina e mostrou um semblante de homem sereno que nunca havia visto. Com a última bola na caçapa, a fúria do Galo Cego custou um taco do meu pai que ele quebrou batendo na mesa e fazendo todos saírem do silêncio num susto coletivo. Celso entregou a arma ao Galo Cego ao seu pedido. Laércio se manteve apoiado no taco esperando a jogada fatal do adversário. A arma apontada para a cabeça. Galo apertou o gatilho. Fechei os olhos. Não ouvi o tiro. Pude ver ainda a cara de surpresa que fez o Galo Cego. Mas gostaria mesmo era de descrever a minha cara de surpresa ao ver o Laércio virando o taco com força na têmpora e arrebentando-lhe os óculos. Não precisou de ouro golpe. E praticamente todos correram do bar.

Celso se aproximou, cumprimentou meu pai, pagou pelas fichas, pegou o revólver, deu um tapinha nas costas do Laércio e saiu como se não tivesse estado ali. Meu pai me mandou para dentro, pois só agora tinha se dado conta de que eu estava ali. Papai implorou e o Laércio foi embora. A polícia fez perguntas, mas conhecendo o Galo Cego pagariam uma pinga para o Laércio em vez de prendê-lo. Ele voltou para a sua terra, não se ouviram mais suas histórias, todos desconfiaram que o Celso tirou as balas da arma, o Veloso declarou que o Laércio tinha sangue nos colhões e eu finalmente entendi essa expressão.