quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O Blefe

O vento úmido assoviava nos cantos dos telhados romanos daquelas casas que, de tão velhas, tanto pareciam abandonadas. Era assustador, pois naquela noite a lua, desobedecendo à ordem divina, não cumpria a sua função de luminar e, ao contrário, se escondia por detrás de uma densa camada de nuvens negras e o céu era todo negro e a rua era toda negra. O tempo não era de frio, mas as roupas molhadas mudavam a percepção e o janeiro era como junho, mas sem festas. O calçamento das ruas era inútil para os sapatos de solas de couro, escorregadios demais para as pedras cheias de limo verde, mas isso não dava para ver, havia de se tatear com o pé antes de mudar o passo prevenido de um possível escorregão. Correr, nem pensar. As rodas dos carros, estacionadas no meio-fio, eram como barragens a juntar toda sorte de tranqueiras que descera com a água da chuva de há pouco e que invariavelmente iriam entupir uma ou outra boca-de-lobo. O homem pisava o lixo enquanto arriscava ficar em pé e caminhar o mais rápido possível sem estragar o verniz do sapato. Era italiano, não o homem, o sapato. O sujeito era um tipo que não se classifica, mas era médico. Estava a pé porque o carro pifara, pois carros italianos, como sapatos italianos, não gostam dessas cidades de calçamentos de paralelepípedos gastos e mal-assentados de tantos anos, e então caminhava desculpado por cumprir o dever do juramento, apressado o mais que podia, carregando a mala pesada de apetrechos que nunca serão vistos. Enfim, estacou-se ao pé de uma porta grande, filha de uma casa assustadoramente maior que o comum. A igreja ficava a duas quadras de ali, e não chamava tanto a atenção para si. Impossível não pensar o que pensou, e sua imaginação dizia que aquela casa era maior que a sua e provavelmente que a de Deus também. E ele fez a comparação. O homem dos sapatos de verniz mecanicamente tocou o botão que seria o da campainha e perdeu outros segundos, porque só então se lembrara de que se tudo estava escuro era porque a chuva havia desativado algum transformador e lhes roubado a energia elétrica, logo a campainha era inútil, então esmurrou a porta de madeira maciça com violência até ser ouvido. A trava pesada e barulhenta se abriu e o homem foi aceito pela grande casa com desespero digno da fome que se tem pela salvação.
Se assim se inicia este conto, é sempre bom estar avisado de que assim também se inicia uma desgraça. Ora, então por que continuar a ler se o mundo já é tão cheio de desgraças? Ora, como não é possível saber se todos já se consideram tão desgraçados, vamos em frente, pois ainda não sabemos o que o homem do sapato de verniz está fazendo dentro da descomunal habitação agora.
Se Deus andou descalço, esse outro salvador veio de sapatos de verniz. Passou pela sala largando nas mãos da criada que o recebera o paletó encharcado e o chapéu entortado pela água que pesa. Havia luz de candeia agora, mas ele não se deu tempo de observar a casa em detalhes, mas nos assegura essa fraca luz que era uma sala grande, tipicamente aristocrática, com ao fundo uma grande estante com escopetas e toda a tralha de caça imaginável, umas cabeças-troféu de inumeráveis espécies bem conhecidas e de algumas ainda desacreditadas da sua existência por muita gente penduradas aqui e acolá, um piano de cauda que deveria valer uns bons dobrões e que, importado, possivelmente sofreria muito mais a umidade dessa região. A grandiosidade da sala remetia a um estilo antigo de construções, o espaço era privilegiado com uma mobília muitíssimo bem disposta apropriada para longas palestras de anfitrião e convidados. Sabemos que o homem do sapato de verniz é médico, o que nos dá o direito de chamá-lo de doutor, sim, porque esse realmente o é, estudou e se formou fora do país e é muito respeitado em Europa, veio cá fazer não se sabe ainda o quê, mas deve fazer bem feito. Então, o doutor passou sem dar muita atenção à disposição dos móveis, mas percebeu alguma claridade que de jeito seu cérebro não pôde evitar, afinal estava acostumado com o breu que a chuva provocara em toda a cidade, há muito já conhecia o lugar e sabia o caminho pelos corredores e escadas sem precisar de cicerone, chegou à porta do quarto onde estava outra criada com uma expressão mumificada e entrou já preparado a aplicar uma injeção, uma de um mesmo frasquinho de vidro amarelo que há meses dizia que acalmaria a dor do moribundo, mas os seus serviços de médico só foram necessários para assinar o horário do óbito. O morto jazia em sua cama, iluminado já por velas colocadas ao seu redor ao jeito de um velório improvisado, coisa da crença da senhora governanta e de outros empregados, gente humilde que viu o amo decair gradativamente com convulsões e febre fatais que o melhor doutor, tendo acompanhado toda a evolução do caso, mesmo com a ajuda de tantas literaturas e de tantos talentosos colegas apareceu-nos sem o devido diagnóstico. O pior foi que o doutor não chegou a tempo para acompanhar o seu paciente nos últimos ais e lhe segurar a mão como a de um irmão, mas antes, poria as luvas de látex, pois a febre abrira feridas pustulentas na pele e sabe-se lá o que este homem tem. Assim mesmo ainda examinou o homem na cama para ter a certeza e saber se postumamente encontraria algo que lhe desse uma resposta ou que lhe aclarasse as idéias. Não sabemos o que o homem na cama tinha ou o que agora o tem, mas saberemos agora que o homem na cama não tinha por que morrer na companhia somente de criados e de um médico. E a família desse homem já que saberemos adiante que ele tem sim uma família? Sabemos que o homem na cama era muito rico, julgando pelo tamanho da sua casa contrastante com o resto da cidade. O silêncio fechou aquela casa hermeticamente.
Com o sol alto já era tempo de se alimentar, pois saco vazio não para em pé, como disse a governanta, e além do mais o senhor passou a noite inteira a velar o patrão e que horas são essas de o senhor cair doente, pois que nem a roupa molhada o senhor trocou, então não me recuse tomar o meu café. Segurou a chávena um tanto vacilante, mas o aroma do café que parecia recém-moído, fresco de tudo, e tirado há pouco em coador de pano foi o suficiente para animar aquela alma a sorver uma grande quantidade meio que queimando a língua. Hora exata em que pisou o tapete da sala um jovem de boa aparência que avisado da piora e depois da morte do pai veio à casa o mais rápido que pôde. A governanta o abraçou, aos gritos de que desgraça, como o faria uma mãe ao retorno do filho. Os homens por um instante se olharam e se reconheceram. O doutor era já há muito freqüentador daquela casa. Desde muito menino para ser mais exato, ainda muito antes do nascimento do rapaz, que agora está diante dele, homem-feito e bastante diferente do pirralho que foi quase expulso de casa a estudar fora por inventar certas inverdades e que há um tanto de anos não mantinha pelo pai o mesmo interesse que pela medicina. O doutor nasceu na casa, filho de uma empregada cujo nome não nos interessa agora, ainda quando o morto tinha menos de vinte anos. Foi criado por lá até que sua mãe morreu e, então, foi mandado para a capital custeado pelo pai do morto e de lá conheceu o mundo graças ao seu patrocinador. O morto, com a morte do pai, assumiu a casa e os negócios da família. Já era casado e enquanto o doutor conquistava o seu título lá fora, o rapaz nascia na casa. Coisa de doze anos mais tarde, o doutor retornou a morar com o morto e sua família e poucos meses depois o garoto, pivô de desavenças foi mandado para o internato. Não se explica a história aqui, mas o fato é que a sua mãe morreu alguns meses depois com uma parada cardíaca inexplicável para tão saudável mulher. Talvez daí venha o seu interesse por medicina. Mas voltemos aos homens que se olham na grande sala. Rancores pesaram o ar, mas não era hora para essas coisas de antiguidade, era hora de tocar com os preparativos da cerimônia que levaria o morto finalmente para fora de sua casa.
O enterro foi feito e nenhum dos homens trocou palavra. Veio a missa de sétimo dia e nenhum fez qualquer gesto que indicasse um fazer de conta que aceitava o outro. O doutor voltara a sua casa e o rapaz ficara interinamente responsável pelas coisas da família. Sim porque todos ainda aguardavam o testamento que o advogado do morto traria para ser aberto após a missa de sétimo dia, como era vontade mirabolante do morto. Os interessados foram chamados a comparecer e foram à casa do morto.
A sensação de morte traz a alguns uma aguçada percepção do resto da vida, como se espremesse o último sumo do coração acelerando suas batidas a bombear mais e mais sangue para o cérebro. Essa sensação traz a mente de volta ao seu trilho e retira dos olhos a nebulosidade da crença que tinha na vida. Espero que isso explique bastante do resto desse conto.
E estavam lá o advogado, o rapaz, a governanta e sua filha (também criada), o doutor e estranhamente o delegado e um policial. O advogado, ao jeito de um professor antiquado, começou a leitura lenta de todos os termos legais do testamento. E todos os outros, exceto o rapaz, e principalmente o doutor, ao jeito da impaciência se remexiam nas cadeiras. Depois chegou a parte que todos esperavam. Chegou a carta do morto. E as frases doentes foram claras. A governanta ficaria sob a tutela do seu herdeiro que lhe deveria dar a aposentadoria justa compensadora dos quarenta anos de dedicação àquela casa. A mulher chorou segurando a mão da filha. E o resto da carta era dirigido ao rapaz, seu filho. Dizia o morto que seu coração sempre fora honesto, mas que muito se enganara na vida. Seu filho não mentira nas suas certezas de anos antes, mas ele não confiara no rapaz. Pedia-lhe perdão, pois confiara no outro, no meio-irmão que seu pai lhe dera, o filho da empregada. Confiara em seus remédios, que o puseram de cama e o fizeram ruir. Mais sorte tivera sua mãe que se fora de um golpe, talvez com o remédio muito mais forte do qual o seu filho suspeitou sempre. Sentia muito, dizia ao filho. Pedia-lhe perdão novamente e afirmava que ele era seu único herdeiro, nenhum outro mais e que esperava que o frasco que seu advogado tinha sob sua custódia esclarecesse a sua doença.
O resto da carta não nos interessa, pois traz somente as recomendações do pai morto que deixa a herança para o filho que não puderam ser lidas nesse dia, porque ao se revelar a existência de um frasco-prova, imediatamente o doutor sacou uma seringa da sua maleta e um de seus frascos amarelos, mas bem maior que todos os outros, e encheu a seringa com a maior dose que pôde, maior que qualquer uma que já ministrara. O delegado e o policial se movimentaram como para impedir o doutor, mas se estacaram a um passo dele sem poder fazer nada. O doutor cavou a agulha no próprio estômago enquanto gritava é meu direito, sempre foi o meu direito, meu direito. E injetou o líquido em si mesmo e o silêncio voltou à casa a que pertencia. Nenhuma voz enfim se ouvia, apenas algum gemido do doutor sozinho no chão, como um feto abortado. Os sapatos de verniz raspavam no soalho e aos poucos perdiam o brilho com os arranhões. O rapaz se agachou diante do agonizante, aproveitando um resto de lucidez do doutor, e pôs diante de seus olhos, com um tanto de riso no rosto, o frasco-prova. Uma lágrima dolorida saiu do olho do doutor quando notou que esse frasco era azul. Silêncio.


Evandro Ferreira