sábado, 1 de março de 2008

Made in Taiwan

Quatro e meia da manhã. O rádio-relógio made in Taiwan desperta com uma música sertaneja da mais brega. Adianta nada. Jorge Firmino já está acordado desde as quatro como em todos os dias nos últimos vinte e cinco anos! Só nunca saía da cama antes para ter o gosto de desligar o danado, que, até uns dois anos atrás, era um despertador dos de corda ainda. Depois, é tomar banho, vestir-se, tomar o café pontual de Maria Benedita e, mais ou menos umas cinco e quinze, viajar de casa até a estação de trens na sua Caloi Barra Forte, chegar meia hora antes e pegar no trabalho às sete. Jorge Firmino lamenta a viagem inteira o seu acordar diário meia hora antes do relógio. Um insulto a quem trabalha tanto e descansa tão pouco. Um desperdício.
Na empresa, opera a perfiladeira automática. Uma inveja para outros colegas que queriam, mas não se dão com a máquina. É serviço melhor. É o dia inteiro um marasmo de assistir àquela coisa gigante trabalhando e, só de vez em nunca, ajustar uma peçazinha aqui e ali. O salário é que não paga o desgaste. Uns seiscentos reais, com descontos mais benefícios. Mas o Jorge, ao contrário da maioria, não reclama nunca. Afinal ele ajunta um bom trocado a mais com as horas-extras que faz e a economia dos passes do ônibus. Não liga de não chegar cedo à casa. Só não se conforma de acordar meia hora antes do rádio-relógio.
Hora do almoço é dominó e truco para o resto da “peãozada” e Jorge fica vendo TV, não se enturma. Sempre fora de pouquíssima conversa. Uma enorme timidez que, não é de hoje, provoca comentários de não sei nem como ele se casou. É difícil ouvir qualquer coisa dele. Quem sempre ouve a sua voz é o seu Marcos, o encarregado de produção. Mas é sempre um “sim-senhor” cabisbaixo, quase inaudível e muito respeitoso. Almoça e vai ao banheiro para depois não ter que parar o serviço por particularidades suas. Inveja os que conseguem fazer uma sesta e se arrepende de ter acordado antes do relógio estúpido de Formosa.
De volta à máquina, pelo ponto de vista do “penso, logo existo” de Descartes, Jorge Firmino não existe mais. É peça integrante daquela armação metálica. Nenhuma preocupação se assoma a sua cabeça. Não há mais razão no que faz, apenas faz. Os olhos negros mirrados acompanham a máquina mecanicamente. Nenhum músculo se move se não for por causa dela. As horas voam do meio dia às quatro. Ele nem faz questão. Os outros é que começam a algazarra do ponto, faltando ainda dez minutos. As máquinas agora aguardam o pessoal do noturno e seu Marcos avisa o Jorge que é hora de ir, pois hoje ele não paga hora-extra não. O homem olha o relógio da parede, passaram-se dez minutos e ele se lembra de ter acordado trinta minutos antes do desgraçado do rádio-relógio.
A mesmice da sua vida começa a incomodá-lo. A volta a casa é um silêncio ônibus-trem-bicicleta pensando só no rádio-relógio. Em casa às dezenove, fala qualquer coisa a Maria Benedita, pega o prato e assenta-se na sala em frente à TV. A mulher ainda tenta incomodá-lo com um falatório de qualquer coisa da novela e de um carnê para vencer ainda este mês, mas não tem papo. Jorge Firmino está com um olhar vítreo de uma cor quase crepitante de quem tem a cabeça povoada por uma idéia macabra. Percebe, só agora, que levara um dia inteiro para entender a sua revolta. Venceria o desgraçado, relógio maldito, instrumento do capeta para infernizar a sua vidinha. Cadê que acordaria meia hora antes?
Ao se deitar, toma o cuidado de desligar o desgraçado da tomada e de arrancar fora as suas duas baterias emergenciais. Se é pra acordar antes, então que acorde sem, pensou o pobre diabo. E ele dorme agora. Um silêncio! Zoada nenhuma na rua. Ronco nenhum de Maria. Três e meia. Quatro. Quatro e meia sem relógio. Cinco. Seis. Acorda com olhos inchados às sete. Levanta o mais depressa que pode. Sem banho nem café pontual que também perdeu a hora. E vai desesperado na sua bicicleta com muito medo do seu primeiro atraso no emprego lhe custar sua demissão.


Evandro Ferreira

Um comentário:

Poem disse...

Vc escreve muito bem Evandro, bastante consciência social em seu discurso. Parabéns!